domingo, 28 de dezembro de 2014

SARGAÇOS

Criar é não se adequar à vida como ela é,
Nem tampouco se grudar às lembranças pretéritas
Que não sobrenadam mais.
Nem ancorar à beira-cais estagnado,
Nem malhar a batida bigorna-mágoa.

Nascer não é antes, não é ficar a ver navios,
Nascer é depois, é nadar após se afundar e se afogar.
Braçadas e mais braçadas até perder o fôlego
(Sargaços ofegam o peito opresso),
Bombear gá do tanque de reserva localizado em algum ponto
Do corpo
E não parar de nadar,
Nem que se morra na praia antes de alcançar o mar.

Plasmar
  bancos de areias, recifes de corais, ilhas, arquipélagos, baías,
                                                                      espumas e salitres,
                                                                        ondas e maresias.

Mar de sargaços

Nadar, nadar, nadar e inventar a viagem, o mapa, 
                                      o astrolábio de sete faces
O zumbido dos ventos em redemunho, o leme, as velas, as 
                                                                                   cordas
Os ferros, o júbilo e o luto.
Encasquetar-se na captura da canção que inventa Orfeu
Ou daquela outra que conduz ao mar absoluto.

   Só e outros poemas
          Soledades
                 Solitude, récif, étoile.

Através dos anéis escancarados pelos velhos horizontes
Parir,
   desvelar,
       desocultar novos horizontes.
Mamar o leite primevo, o colostro, a Via Láctea.
E, mormente,
          remar contra a maré numa canoa furada
Somente
          para martelar um padrão estóico-tresloucado
De desaceitar o naufrágio.
Criar é se desacostumar do fado fixo
E ser arbitrário.

                                                  Sendo os remos imateriais.
                                    
                                                  (Remos figurados no ar
                                                  pelos círculos das palavras.)

(Waly Salomão, Lábia)
  

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

VIDAS PARALELAS


(Pseudíssimo-Plutarco, Vidas Paralelas - Antônio Cícero e Dante Alighieri)
 

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

COMO SÃO

  Pela lembrança
pelo olvido
  co-movido
           

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

DES(A)TINO

   Cedo
me quis
   o destino
calado

   Não meta
destino
   o nariz
onde não é chamado!

terça-feira, 16 de dezembro de 2014


Há um cio vegetal na voz do artista.
Ele vai ter que envergar seu idioma ao ponto
de alcançar o murmúrio das águas nas folhas
das árvores.
Não terá mais o condão de refletir sobre as
coisas.
Mas terá o condão de sê-las.
Não terá mais idéias: terá chuvas, tardes, ventos,
passarinhos...
Nos restos de comida onde as moscas governam
ele achará solidão.
Será arrancado de dentro dele pelas palavras
a torquês.
Sairá entorpecido de haver-se.
Sairá entorpecido e escuro.
Ver sambixuga entorpecida gorda pregada na
barriga do cavalo -
Vai o menino e fura de canivete a sambixuga:
Escorre sangue escuro do cavalo.
Palavra de um artista tem que escorrer
substantivo escuro dele.
Tem que chegar enferma de suas dores, de seus
limites, de suas derrotas.
Ele terá que envesgar seu idioma ao ponto de
enxergar no olho de uma garça os perfumes do
sol.

(Manoel de Barros, Retrato do artista quando coisa)
 

domingo, 14 de dezembro de 2014

A PÉTALA E O ORVALHO

   Viestes como vida
De passagem, de partida
   Colorida de rubor
Conduzida pelo vento
  
   Sobre o caule que fadiga,
O orvalho do suor
   Cobre a pétala caída
Farta de contentamento

sábado, 13 de dezembro de 2014

ONDE NÃO ESTAMOS

Há um lugar
Onde o tempo não passa
No qual sou cativo
Das minhas instituições

Nesse lugar estranho
Arredio a geografias e à rosa dos ventos
Sou o rei espoliado
Que governa o desgoverno do nada
Por puro prazer, por puro engano

Há um lugar
Onde o tempo não passa
E onde nada passará
Onde a grama não cresce
Onde o sol é sentimento
Onde a esperança é o bobo da corte
Zombeteiro e desarmado

Esse lugar
Tem vivido em polvorosa
Com o vaticínio banal
De um vate ancestral
- O rei cairá, senhoras e senhores
  Avizinham-se forças mundanas
  Ávidas de danos concretos
  E de melodias menos patéticas
  Cercados estamos!
  Não resistamos!
  Em nome dos deuses
  Não resistamos!
  Se não resistirmos
  Eles passarão!
 
Já adentra os portões o divo cavalo
Que saqueiem e ateiem fogo à cidade
Em que vivemos e onde não estamos!

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

MANHÃZINHA

Tua lembrança conduziu-te de tão longe
Ao instante em que a brisa me atingiu
Distraído nem sequer me dava conta
E a manhã de dedos róseos fez-se anil

No silêncio cujo gozo inda é de ouro
Da labuta dorme o mundo e o seu ranger
Nesta hora ao teu sussurro o ouvido ausculta
E ao balé da alma una a se expandir

Entretecido côa o filtro o acorde exato
Perfuma o ar as fortes notas de café
Por entre livros que desdizem a matemática
Me reconduzo à terra firme e aos teus pés

Ao teu sussurro ainda ouço, menos claro
Entre os ruídos mais que humanos do despertar
Sutil navalha reparte em muitas a una alma
Em todo canto abrem janelas de par em par

A cidadela é já balburdia o sol colore
Aos fragmentos e cada parte é mais que tudo
N’algum lugar muito distante tua mão colhe
Sob o pomar da vida o suculento fruto

domingo, 7 de dezembro de 2014

POESIA

Ainda que com olhares de belas ninfas a vida clame
De mim és diva guia que soberana reina cruel
Destino que se consuma sem tolo pranto e sem escolha
Que soem dos teus exércitos de palavras firme tropel 

Clangores do ferro etéreo se avizinham da cidadela
Adiante soa a trombeta a pôr guerreiros em prontidão
Mulheres se desesperam e fazem preces a deuses pétreos
O sangue corre nas veias, levitam alvos os pés do chão

Um brado soa terrível, diz ser a vida diva batalha
Sussurros o contradizem, sugerem diva a comunhão
O peito em polvorosa retumba as rochas d’alta muralha
Trabalham os duros punhos entre refregas e mansidão

Distante, muito distante no bosque brincam ninfas travessas
Persegue-as com teso caule o divo Pã, cascos de bode
Encenam entre vinhedos do drama áureo versões avessas
Entoam da vida o canto, versos satíricos, lascivas odes

Já longe vai a batalha na cidadela dos tempos idos
Já mortos o mercenário exposto e o rei, ambos irmãos
No bosque o som da flauta soa prazeres consentidos
O sol no azul do céu nos ilumina com seu clarão

Ó musa que me consagra de ti humilde sou servidor
Rapina me traz a águia de afiado bico guerreiro
Qual bípede sem asas ou pluma vôo em seu louvor
Medita em mim coruja de quedo olhar e sábio zelo

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

BRETANHA E O SAXÃO


Peregrinando por planícies        que se expandem mortas
Viajante voraz do éter        que à vida envolve véu
Da mansidão me despedi        distante é a minha porta
Vagante eis me convidado        aos negros olhos teus

Abandonado o continente        o império, glória e queda
Troa da tribo a triste marcha        tormenta tez e ti
Sentada sobre a rocha alta        não sabes que te espera
O teu flagelo vindo de longe        paixões, guerras, ardis

Como errante me aproximo        da meta doce é o erro
Que me conduz pelas borrascas        trilhas de terra e céu
Nos envolvendo de vez por todas        seio cruel e terno
Fazendo meu o teu destino        e o meu destino o teu

Terra morena, linda Bretanha        salgadas ondas negras
Do navegante, na voz potente,        o nume emergiu
Tomo-te o corpo, semeio o ventre        te à primavera entregas
E à vertigem do torvelinho        das estações o ardil

Incandescente é o calor         subterrânea é a dádiva
Que avança sobre fronteiras        bandeiras cidadãs
Bebamos barbaridades         desta tragédia impávida
Que promete, a cada inverno,        felicidades vãs

Como chegado enfim partido        me chama a solitária
Estrela clara que, só, navega        noturno peito atroz
A lua uiva a diva jóia        e a mim consagra o pária
Que do éter fez morada        longínqua e estranha foz

sábado, 5 de abril de 2014

CANTO AGÔNICO


Prólogo

Quando foi que juntamente com tudo
Passei eu mesmo a ser esse
Que aparentemente sendo muito profundo
Se afogava num raso sem peixes?
E que apoiado nas tantas palavras
Penduradas qual penduricalhos
Ornamentos pesando a cascalhos
Sobre a fonte do mau entendimento
Comecei a erguer meu castelo
Ora em ruína, mas todo erguido
Por vapores de um ingente anelo
Que na frieza dos dias vividos
Enrijeciam-se feitos escravos
Que, todavia, trabalham contentes
Com o único intento de terem
A mim para sempre só deles?

Canto e espanto

Vejo o mundo ao entorno
Vejo a mim mesmo e contemplo
A origem de novos rebentos
Grãos de terra de um chão que não escolho
Leito d’um zelo em excesso
Mão que a tudo amaina
Não se vale do verso e o reverso
Absoluta é a sua escolha
E da gruta o mundo renasce
Sob a luz se alarga nas bordas
E como estória que alguém já contasse
Com dois olhos à vida acorda
Mas acorda também pensamento
Afastando-se um passo do abismo
Pouco pensa, é mais sentimento
Sensações que não sabem o cinismo

(Mas quando?, ainda pergunto,
Que o cinismo passou a ser eu
E o mundo, que por mim mais cresceu
Converteu-se em tão árido assunto?)

Um segundo e a concepção
Faz de mim um destino sem escolha
Faz a forma pr’aquele que olha
Faz o ato da revolução
Tão primeira e tão necessária
À tragédia de tudo o que existe
Sou um filho que o mundo assiste
Sou quem expande pra muito sua área
Minhas pernas de terra são feitas
Passo a passo a terra não acaba
O caminho de certo e estreito
Em descampado imenso se alarga
Mas aos passos, não há quem os explique
Só do mundo a escrit’inacabada
Que se abre a quem se verifique
Amante andarilho cantor de palavras
Mas também a matéria pensante
Na poeira da terra germina
Entre o abismo e o pasto se firma
E ao mundo traceja o semblante

Origem e tragédia

Parece-me inescapável
De início o primeiro fantasma
A pergunta que a muitos engasga
Uma origem que seja explicável
Para isso a palavra é preciso
Ferramenta exclusiva dos homens
Criadoras que erguem abrigos
E o entendimento consomem
Rejeitadas pela natureza
Que de inícios sempre as dispensava
Viu nascer de soslaio sua presa
E já ela num instante chorava
Pois o ser que primeiro nasceu
Era causa e também conseqüência
Engolfado em si mesmo torceu-se
Dando à forma primeira existência
Junto à forma nascia o som
Junto ao som rebentou a palavra
E do mundo quebrou-se o encanto
Que o silêncio há tanto gestava
Pois o pranto não era à toa
O fazia toda a natureza
Que não tarde fez-se a nova presa
Do infante de audível coroa
Eis o ser e eis toda sua força
A palavra, pilar da sua História
Dominado aquele que a ouça
Se a proclama, senhor da sua glória

Então tudo, em seu torvelinho
De solavancos a tudo inverteu
E se o vento fazia o moinho
Sozinho e sem vento o moinho moeu
E o mundo que era ele mesmo
Os limites que a vida expandia
Enganado, sem rumo e a esmo
Se quedava esquivo e ouvia
A palavra de um pensamento
Que crescia em torno a si mesma
Dando asas aos vermes, às lesmas
Que não viam na terra o contento
Eis, então, que todo pensamento
De reinante ao abismo voltou
No vazio cultivou o tormento
E no peito do homem o instalou
Eis o mundo e o homem distantes
Eis o homem refém da idéia
Eis o todo em nada sobrante
Como sombras correndo nas veias
E a vida converte-se em sonho
E o castelo mantém-se altivo
Pois a sombra oculta o dano
São os olhos mais cegos que o ouvido

Andarilho errante

Caminho por ruas noturnas
Caminho por ruas sem cores
Mas se o dia traz o colorido
Traz ao homem o fim das’uas dores
Não concedo verdade ao tormento
Que cultive um homem em vão
No avesso interno do peito
Desprezando a astúcia das mãos
Quem caminha conhece o mundo
E pra trás deixa o próprio jardim
Que no início é maior do que tudo
Se explorado quase não tem fim
Todavia, é depois da cancela
Que se guarda a extensão de uma vida
Mas fechando-a é vã toda espera
Que esperando não encontra a partida
Pois partido se torna o homem
Que transborda por sua cisão
Flores mortas que suas mãos colhem
E não cessam de brotar do chão

Demônio Apolo

Me parece em voga a moda
Que cultiva qual ignorante
Que assim sendo é muito falante
E tantas voltas dá à simples corda
Eis que as voltas em forma de forca
Lhes investe de volta o argumento
Sem nem mesmo que se faça força
Agoniza-lhe o próprio instrumento
Tão altivo se me aproxima
Repartindo o caminho das pedras
Sobre mim seu juízo se inclina
Tolo ser que a si mesmo se enreda
Pois bem saiba que as flores que colho
Não são mortas, mas vivas urtigas
E se ao peso do mundo me encolho
Tens minha ira em contrapartida

Epílogo

Demônio moderno da luz
Andarilho sem eira nem beira
É a guerra o que a ambos seduz?
É o medo que a um deles tempera?
Contendores da vida agônica
Harmonia e feliz dissonância
É vizinha a lacuna astronômica
São guerreiros o canto e a dança
Num planeta distante nascemos
Mas o erro é a morada da vida
Somos jovens se um dia crescemos
Terra e céu, corpo e ment’ eis a lida  

Andarilho errante

Ó terceiro, fiel conciliador
É dialético o som do teu canto
Teu silêncio, porém, um horror
Subtrai a ação do seu tanto
Concilia na voz guerra crua
Nada disse que eu já não sabia
Mas tua voz é também o motor
Que as destroça, as hierarquias?
Tua voz menos vale que o gesto
Se ressoa senão para ti
Quem te pôs o tirano cabresto?
O demônio Apolo sorri

Demônio Apolo

Bem nascidos, sem fim tagarelam
A palavra é o triunfo do ser
Mui distante os gregos acenam
É a idéia seu prevalecer
Se a querem negar como fazem
Se a querem enfim destruir
Fortalecem a idéia que trazem
Destruição destruidora de si
Essa rede de tempo tecida
Pescador, mestre e aprendiz
É arpão, é anzol, presa e isca
Do que é dito e do que não se diz
Dialética, mais bela piada
Negação, euforia e ardor
Silogismo, minha lança afiada
É o único possível vetor

Andarilho errante

Ora, Apolo, tua arte conheço
Sempre preso ao teu falso vetor
Artifício que já de começo
Te acusa uma ausência e uma dor
Não que sintas, bem sei tanto e quanto
És covarde à todo o sentir
Por que pensas o mundo ser manco?
Pra amainar o teu medo de ti?
Se o grego distante se encontra
Sua luz é razão da sofística
Cujo dedo desmonta e remonta
Pretensões tolas e metafísicas

Mais um epílogo

A criança e o quebra-cabeça
O adulto e a doutrina moral
O futuro é o homem e a besta
E o amor e a luta agonal
     

quinta-feira, 27 de março de 2014

CURVA DRAMÁTICA


   O refrão re-começa
Transborda e passa 
   Mas só repete
O bom da promessa
   Após revirá-la
Em farsa
        

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

O RIO DE PARMÊNIDES

Parmênides entra na água.

PARMÊNIDES: Quem é você, rio que me banha?

HERÁCLITO: Heráclito é meu nome.

PARMÊNIDES: Agradeço pela gentileza.

HERÁCLITO: Não carece agradecer.

PARMÊNIDES: Agradeço mesmo assim.

HERÁCLITO: Ora, não compreende.

PARMÊNIDES: Claro que compreendo! Você é um rio modesto. Mas ainda assim, insisto. Agradeço de coração.

HERÁCLITO: Agradeço também a sua gentileza. Mas ainda assim tenho que dizer o que digo a todos que, iguais a você, não entendem até que eu diga.

PARMÊNIDES: Ora, nem tão modesto assim, heim... mas, vá lá. Diga, então, o que a tudo esclarece.

HERÁCLITO: Não carece agradecer porque não seria possível agradecer-me. Apenas isso.

PARMÊNIDES: E que espécie de rival de Zeus todo poderoso é você, cuja satisfação não se sacia?

HERÁCLITO: Sou devoto do Zeus ajuntador de nuvens tanto quanto você, Parmênides meu velho. Sou um rio, sou parte da grande família. Sou também o fluxo incessante que passa por um ponto fixo. Carrego, levo para longe, desbravo. Para aqueles que resistem, imponho pressão. Não uma pressão exclusivamente minha. Uma pressão vinda de uma afirmação e de uma negação. Dessa pressão, cria-se. O seu banho, por exemplo.

PARMÊNIDES: Que me limpa bem o sei e por isso lhe agradeci. Mas meu agradecimento foi rejeitado. O porquê disso ainda não se explicou.

HERÁCLITO: Ora, homem, banho-te infinitas vezes num único banho! Não existo a não ser em eterno movimento. Não é possível me agradecer infinitas vezes. Portanto, não carece. Fique à vontade.

PARMÊNIDES: Então agora agradeço pelas eternas e infinitas vezes que já me banhou, pela que me banha agora e pelas que ainda irá me banhar. O que acha?

HERÁCLITO: Já não sou mais o mesmo que ouviu. Poderia, por favor, repetir infinitas vezes?

PARMÊNIDES: Estaria eu abrigado a tomar, em toda a minha vida, um único banho para cumprir tal tarefa. E ainda assim, morreria limpo, mas não conseguiria cumpri-la.

HERÁCLITO: Portanto, guarde sua cortesia aos que, como você, precisam reconhecer o que são. Quem são. Apenas sou.

PARMÊNIDES: Compreendo o que diz. Contudo, ainda me inquieto. Por que não haver cortesia, mesmo entre tão distintos interlocutores?

HERÁCLITO: Interlocutores?

PARMÊNIDES: Sim. Estamos conversando, não?

HERÁCLITO: Estamos?

PARMÊNIDES: Ora, estamos! – após pequena pausa – Não estamos?

HERÁCLITO: Já lhe disse, homem, e repito. Sou um rio. Se conversa comigo é porque conversa consigo mesmo. Fez a você sujeito e tomou-me por seu objeto. Fez-me perguntas e atribuiu-me respostas. Mas, de fato, apenas sou. Rio.

Parmênides continuou o seu banho. Ficou pensativo durante algum tempo. Quando já se sentia limpo, disse:

PARMÊNIDES: Bom, neste caso, agradeço de coração, paciente e bem aventurado rio.

HERÁCLITO: Disponha, Parmênides meu velho.

Parmênides, com um sutil sorriso de satisfação, calou-se. Num leve movimento, suspendeu os pés do fundo.Começou a boiar e a ser levado pela correnteza. Mais do que limpá-lo, o banho no rio de Parmênides fez dele rio e desaguou seus pés em novas paragens.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

FUI BEBER COM O JOVEM RIMBAUD!

Quando fores dormir, noite alta,
Diga ao sono, por mim, que não estou
Mas console-o, se de mim sinta falta
Fui beber com o jovem Rimbaud!

Uso bom faça do travesseiro
Elogie-o a gentil maciez
Mas em sonho me alcance o isqueiro
Que consome esta vil timidez

Co’ cigarro acesso, palavras
Multiplicam as nuvens no céu
Negro manto precede a alvorada
Longa escada conduz ao que é meu

À cerveja e ao seu colarinho
Ébria noite envolvendo o silêncio
Dormes tu, ó razão, e o vizinho
Mas no peito arde alegre o incêndio

Quente brasa do amor que cultiva
Descampado em solo sem cerca
Se te amo, é porque estás viva
Ó quimera, que a lua festeja!

Toda cheia de uivos anônimos
Traz na luz o que resta do dia
Quase nada senão largo ânimo
De tragar o mel da boemia

Noite alta, a cama vazia,
Quadrilátero em que não estou
Dorme só sua espuma macia
Já não durmo, bebamos Rimbaud!

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

AS RUGAS DOS ENIGMAS

O tempo é a mais estranha das criaturas. Talvez porque nem mesmo seja uma criatura. De qualquer forma, é estranho. Estranho e, por isso mesmo, fascinante. Às vezes ele me chama para brincar. Eu mesmo não dou muita atenção, já que passei da época de fazer estripulias dessas que tanto o agradam. Mas não raras vezes existe em mim uma criança, ora tirana, ora um camaradinha porreta, que se dispõe a não deixa-lo brincando sozinho. Há algum tempo venho aprendendo que o tempo está em tudo, mesmo na criança que não cresce. Por isso, que vá a criança brincar sem culpa enquanto eu, o adulto, me encarrego das rugas dos enigmas. Ela foi. Quando voltou, bastou ouvir seu relato para redescobrir que enigmas são coisas para serem apreciadas por crianças enquanto brincam. Eis o que ela me disse:

Brinquei de macaco de imitação a tarde inteira. Ora o tempo disparava feito uma flecha que nunca atinge o seu alvo, ora se fingia de tartaruga que, apesar da lentidão, era impossível de ser ultrapassada. Em seguida se fazia de sapo e dava pulos largos demais para as minhas pernas, depois estacava, depois dava uma sequência de pulos curtos, estacava de novo, e pulava e estacava e pulava. Depois disparava feito flecha e, então, ralentava novamente. De repente, ele subiu em linha reta feito tiro de revolver apontado para o céu. Não me fiz de rogado e sai voando no seu encalço. Vendo que eu tinha certa intimidade com a imensidão atmosférica, ele fez uma graciosa curva em parábola, lá perto dos dedos da mão de Atlas, e se pôs numa frenética queda livre, rodopiando em espiral. É lógico, fiz o mesmo. Na descida, me senti como um marujo de primeira viagem que vomita o próprio estômago por causa do balanço do mar. Mesmo assim, não parei de cair. Caia e rodopiava com a cabeça voltada para o chão e as pernas para o céu. Fui adquirindo mais velocidade e cada vez me aproximando mais dele. Acho que ele deve ter se lembrado da antiga estória sobre um garoto que abusou da autonomia de vôo das próprias asas de cera, porque pela velocidade que eu estava, se ele não parasse de cair e pegasse uma ascendente, era capaz de eu ter me esborrachado no chão. Tornei, então, a subir junto com ele até pousarmos, ao mesmo tempo, no chão. Ele disse que eu era bastante corajoso, mas que ainda tinha muito o que aprender. Não sei o quê?! Afinal de contas, estávamos apenas brincando! Resolvemos voltar para casa. Andávamos lado a lado. Então, num piscar de olhos, ele simplesmente desapareceu. Olhei em todas as direções e nada do tempo. Cheguei mesmo a chamar-lhe de ingrato por ter partido sem nenhuma palavra. Eis que quando cheguei em casa, ouvi uma voz. Era ele. Disse:

- Estamos, agora, ocupando o mesmo espaço, camaradinha! Por que você não aproveita, vai até a janela e dá uma olhada. Lá você verá o seu futuro.

Sai correndo, abri a janela e vi: uma nuvem, navegando no céu azul. 


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

NOITE GRAVE

A ira me possuía; então, por Heitor chamei
A casa estava vazia, o reino de um só rei
O coro desesperava a melodia da perdição
O caule intumescia todo o apelo da desrazão

Delirava pelo combate e pelo enterro mais antigo
A nostalgia se insinuava como o impossível, como o abrigo
Não a queria, mas o infinito que só se tem pela metade
Como lembrança do dia sóbrio enluarando a noite grave

A que demônio estava entregue numa cidade de faz de conta
Que de real a nada assiste, mas à loucura o dedo aponta?

Pelo gargalo sorvendo o vinho sangüíneo espesso fluxo tinto
De cena em cena dramatizava a realidade do quanto minto
O quanto minto saber mentir só pra viver de fato a vida
Dispersa e bela e tola e fútil e tudo e nada logo em seguida
Ouço a canção que já me escapa e faz de mim acorde estranho
Três notas soam a dissonância do vil conjunto do qual apanho

Penso na virgem sob os escombros tragando o deus na própria goela
Penso naquele que traz a rocha no ombro e a quem a queda espera
Penso no arqueiro solar Apolo, também no cego já de nascença
Que a si cegou-se mais uma vez só pra sentir de si a presença
Penso no jovem de pé ferido abandonado na ilha antiga
Penso no Hércules sósia de Ulisses que ama a vida como inimiga

Como conter tanto tormento d'uma existência tão pequenina?
Como amar tão largo amor que tudo quer e nada ensina?
Carnificina das mil palavras todas lavradas em alma errante
Promíscuos símbolos de uma geada desfeita pelo sol de antes

Ah, meu amor! Ah, meu amor! Ah, minha amante amada amante!
Por que possuis a tudo e faz de mim mortalha de um infante?
Ah, meu amor! Minha donzela, alma que é minha, o meu destino
De onde vem a força débil dessas tolices que tanto afirmo?
Por onde flui o curso hostil que rompe a margem onde me deito?
Que oceano trama o naufrágio e alarga o fio de água estreito?

Profunda sombra que a tudo sabe e a nada sabe dar razão
Pr'onde me leva entre os segundos que se acumulam em profusão?
Sou teu escravo ou teu vassalo, sou tua estirpe ou sou dejeto?
Sou teu sustento que apodrece, ou sou de ti o próprio tempo?
Ah, noite escura que se aninha numa garrafa, num coração
Faça de mim o que quiser, faça de mim não mais que vão!