segunda-feira, 27 de junho de 2011

A PAZ

A paz invadiu o meu coração
De repente, me encheu de paz
Como se o vento de um tufão
Arrancasse meus pés do chão
Onde eu já não me enterro mais


A paz fez um mar da revolução
Invadir meu destino; A paz
Como aquela grande explosão
Uma bomba sobre o Japão
Fez nascer o Japão da paz


Eu pensei em mim
Eu pensei em ti
Eu chorei por nós
Que contradição
Só a guerra faz
Nosso amor em paz


Eu vim
Vim parar na beira do cais
Onde a estrada chegou ao fim
Onde o fim da tarde é lilás
Onde o mar arrebenta em mim
O lamento de tantos "ais"


(Gilberto Gil)
                   

TRIZ E TESA

      A ilusão da eternidade
é o que nos faz infeliz.
      A geniosa felicidade
quer sempre o gozo por um triz.
                             

GENEALOGIA

       Não, meu amor,
amizade não é menos!
       É mais, é muito mais.
Somos nós dois e os pequenos
       e tudo o mais que a vida traz.
                                  

AZEDUME

     Empurrar a quem se ama para a vida
deixa marcas na estória
     d’um doce amor que quer guarida.
                                                       

FORA DE ÓRBITA

     Inadvertido e inconsciente ariano
guerreia epopéias
     no fundo do oceano
                                

sábado, 18 de junho de 2011

CORAÇÃO APRENDIZ

Coração sem tamanho
colhe, no mundo,
a doçura dos sonhos.

Semeia sorrisos e levezas,
preenche cavidades
co’alegrias e certezas.

Orgulhoso,
suspira feliz.
Não antevê reviravoltas
o distraído aprendiz.

O mundo, paciente, o observa.
Aguarda o clímax para mostrar-lhe
o tanto a mais que lhe reserva.

Mundo humano e experiente, sagaz e cruel
pretende pôr a toda prova
o coração, sua doçura e o fel.

Acrescenta à risada
um excesso estridente e vazio.
Ao silêncio, a hesitação
que finge que nada viu.

Coração sem tamanho,
então, também colhe a perfídia.
Diz-lhe que, como a tudo, também a ama:
seu amor intenso o paralisa.

Coração sem tamanho
não deseja parar de amar.
Semeia os frutos da infância perdida
submersos na imensidão desoladora do além-mar.

Incerto sobre a medida de si,
busca, na semeadura, o conhecido amor
que já não cabe e só faz ferir.

– Ah, coração errante!
   Por que só apazigua-te na solidão?
   Por que sonha acordado na linha de fogo?
   Por que chora e sorri na contramão?

   Diz qual o teu tamanho
   e também o tamanho do mundo:
   qual dos dois ao outro abocanha
   e faz dos séculos indomáveis segundos?

Coração crescido e muito menor
tem o feliz tamanho de tudo que é dito de cor

Nele cabe raso e profundo,
assim como suas dimensões
igualmente cabem no mundo.
                               

quinta-feira, 16 de junho de 2011

AVANTE!

     Quero que vivas bem, meu bem.
Firme nas derrotas
     que te lançam mais além.
                       

terça-feira, 14 de junho de 2011

MOVIMENTO

         Martela, na cabeça, um dilema.
Mas nada que não se mova
         vale a pena!
                                

sábado, 4 de junho de 2011

LUZ E SOMBRA

Roda, vertiginosa,
a máquina de Drummond.
Pródiga em imagens,
discreta em seu som,
colhe um punhado de flores lógicas
no jardim da civilização.

Seus faróis são raízes,
iluminam um futuro
matemático e seguro
até o dia em que a crise vem.
Caso, porém, a crise não venha,
(como sonhas, mas não dizes)
é o papel do cego o que desempenhas,
pelo medo que te afliges.

O tempo e o cansaço,
no entanto, também agem.
A noite nunca dura,
sem estrelas,
mais que o gozo da vontade.

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A MÁQUINA DO MUNDO

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
 
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

(Carlos Drummond de Andrade) 
                                   

sexta-feira, 3 de junho de 2011

BARULINHO QUE O TEMPO NO PEITO FAZ

     Pulsa um punho neste peito.
Se te vejo, nada penso.
     Ajo! Está feito.
                            

quinta-feira, 2 de junho de 2011

QUEDA E ASCENSÃO

         Músculo cardíaco:
incessante operário,
        sonha alto o céu de Ícaro.
                               

CORAÇÕES


Mundo Grande de Sete Faces

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus,
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.

Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.

Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem... sem que ele estale.

Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma, não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo...
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos – voltarão?

Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)

Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.

Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.

Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.

Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
– Ó vida futura! Nós te criaremos.

(Carlos Drummond de Andrade)

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Coração Vagabundo

Meu coração não se cansa
De ter esperança
De um dia ser tudo o que quer

Meu coração de criança
Não é só a lembrança
De um vulto feliz de mulher

Que passou por meus sonhos
Sem dizer adeus
E fez dos olhos meus
Um chorar mais sem fim

Meu coração vagabundo
Quer guardar o mundo
Em mim

(Caetano Veloso)

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     sossegue coração
ainda não é agora
     a confusão prossegue
sonhos afora

     calma calma
logo mais a gente goza
     perto do osso
a carne é mais gostosa

(Paulo Leminski)