segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

NINGUÉM MORRE JAMAIS

- E Vicente? - perguntou ela com voz monótona, as duas mãos agora na perna dele.
- Morreu. No ataque à cidade de Celadas.
- Vicente é meu irmão. - Ela esticou o corpo e tirou as mãos da perna dele.
- Eu sei - disse Enrique, e continuou comendo.
- É meu único irmão.
- Pensei que você já soubesse.
- Não sabia, e ele é meu irmão.
- Sinto muito, Maria. Eu devia ter dito de outra maneira.
- Ele realmente morreu? Tem certeza? Não seria uma notícia sem confirmação?
- Olhe, Rogello, Basilio, Esteban, Felo e eu estamos vivos. Os outros morreram.
- Todos?
- Todos.
- Não me conformo.
- Não devemos ficar falando nisso. Morreram.
- Mas ele é meu irmão. Você não entendeu ainda? Meu irmão.
- Somos todos irmãos. Alguns morreram, outros estão vivos. Nos mandaram de volta para que sobrassem alguns. Do contrário não sobraria ninguém. Agora temos que trabalhar.
- Mas por que morreram todos?
- Estavamos numa divisão de ataque. Neste caso ou se morre ou se é ferido. Nós outros fomos feridos.

Ela não respondeu e ele acabou de comer.

Soprava um vento fresco nas árvores, e estava frio na varanda. Ele recolheu os pratos no cesto e limpou a boca com guardanapo. Limpou as mãos cuidadosamente e pôs o braço na cintura dela. Ela chorava.

- Não chore, Maria. O que aconteceu é passado. Precisamos pensar no que temos de fazer. Temos muito que fazer.

Ela continuou calada, o rosto iluminado pela luz da rua, olhando para frente.

- Precisamos nos vigiar contra romantismos. Este lugar aqui é um exemplo de romantismo. Precisamos parar com o terrorismo. Precisamos cuntinuar evitando cair novamente em aventureirismos revolucionários.

A moça continuava calada. Ele olhou aquele rosto em que tinha pensado durante os meses em que pôde pensar em alguma coisa que não fosse o seu trabalho.

- Você fala como um livro - ela disse. - Não como ser humano.
- Desculpe. São lições que aprendi. Coisas que sei que preciso fazer. Para mim é mais real do que tudo.
- Para mim só os mortos são reais - disse ela.
- Prestamos homenagens a eles. Mas eles não são importantes.
- Olhe você falando de novo como um livro - disse ela zangada. - Seu coração é um livro.
- Deculpe, Maria. Pensei que você entendesse.
- Só entendo os mortos.

Ele sabia que não era verdade porque ela não os viu mortos como ele os viu, na chuva no olival da Jarama, no calor das casas bombardeadas de Quijorna, e na neve em Teruel. Mas sabia que ela o culpava por estar vivo quando Vicente não estava mais; e de repente, na parte humana ínfima e incondicional que restara nele, e que ele não sabia que ainda guardava, sentiu-se profundamente ofendido.

- Tinha um passarinho - disse ela. - Um tordo poliglota na gaiola.
- Tinha. Eu soltei.
- Que pessoa mais caridosa! - disse ela em zombaria. - Os soldados são todos sentimentais?

Ele se sentiu ofendido pela segunda vez, ele que pensara ter um coração duro que nada podia ofender nunca mais, a não ser a dor. Sentou-se na cama e se inclinou para frente.

- Levante o meu suéter - disse ele.
- Eu não.

Ele levantou o suéter nas costas e se encurvou.

- Veja, Maria. Isto não é de livro.
- Não posso ver. Não quero ver.
- Ponha a mão embaixo nas minhas costas.

Ele sentiu os dedos dela tocando aquele ponto afundado onde podia caber uma bola de beisebol, a cicatriz horrenda do ferimento em que o cirurgião tinha enfiado a mão enluvada para limpar, ferimento que ia de um lado da cintura ao outro. Sentiu o toque dos dedos dela e se encolheu. No momento seguinte ela o abraçava e o beijava, os lábios como uma ilha no repentino mar branco de dor que surgiu, invadindo-o, como uma onda brilhante e insuportável. Os lábios ainda nos dele; depois a dor de repente cessando e ele sentado sozinho, molhado de suor, e Maria chorando e dizendo: - Oh, Enrique, me perdoe. Me perdoe, Enrique.

- Tudo bem. Nada a perdoar. Mas não foi parte de nenhum livro.
- Me beije, Enrique.
- Só se for com muito cuidado.

Na cama, no escuro, conduzindo-se com cuidado, os olhos fechados, os lábios dele e os dela em contato, a felicidade sem dor, a volta para casa de repente sem dor, a sensação de estar vivo voltando sem dor, o conforto de ser amado e ainda sem dor; era um vazio de amar, agora não mais vazio, e os dois jogos de lábios no escuro, encontrando-se felizes e com doçura, no escuro e no calor da casa, e sem dor, no escuro; de repente soa a sirene cortante, despertando toda a dor do mundo. Era a sirene real, não a do rádio. Não era uma sirene. Eram duas. Vinham cada uma de um lado da rua.

Ele virou a cabeça e depois se levantou. Achou que a volta para casa durara pouco.

- Vamos - disse ele - nós dois. Aqui não há nada para ser protegido. O material é imprestável. É melhor fugirmos.
- Quero ficar. Quero proteger você.

Ela pegou o Colt no coldre debaixo do braço dele, ele deu-lhe um tapa na cara. -Vamos. Não seja ingênua. Vamos!
 
Desceram a escada. Ele sentiu a moça bem atrás dele. Abriu a porta e saíram juntos. Ele trancou a porta. - Corre, Maria - disse. - Nesta direção passando pelo terreno. Já!

- Quero ir com você.

Ele deu-lhe outro tapa. - Corra, depois pule na vegetação e rasteje. Me desculpe, Maria. Vá. Eu vou pelo outro lado. Vá. Ora essa, vá!

No capim, a moça continuava deitada com as mãos cruzadas no alto da cabeça.   "Me ajude a agüentar isto", disse ela apenas para o capim, pois estava sozinha ali. E de repente, nominalmente, soluçando: "Me ajude, Vicente. Me ajude, felipe. Me ajude Chucho. Me ajude, Arturo. Me ajude agora, Enrique. Me ajude."

Enrique, me ajude, ela pensou. Tirou as mãos da cabeça e fechou-as de encontro ao corpo. Assim é melhor, pensou. Se eu correr atiram. Será mais simples.

Levantou-se lentamente e correu para o carro. O holofote pegou-a em cheio. Ela correu vendo só o feixe de luz, uma luz branca cegante. Achou que era a melhor maneira de sair daquilo.

Atrás dela gritavam, mas não houve tiro. Um homem lhe deu um violento safanão, e ela caiu. Ouviu-lhe a respiração quando ele a segurou.

- Não - disse ela. - Não. Não. - E gritou: - Me ajude, Vicente! Me ajude, Enrique!
- Já morreram. Não podem ajudar você. Não seja boba - disse alguém.
- Podem. e vão me ajudar. Os mortos vão me ajudar. Vão, sim. Os nossos mortos vão me ajudar.
- Então dê uma olhada em Enrique - disse o tenente. - Veja se ele está em condições de ajudar. Aí na traseira do carro.
- Ele está me ajudando - disse Maria - Não vê que ele está me ajudando? - Obrigada, Enrique. Muito obrigada!

Maria sentou-se e ficou imóvel apoiada no encosto do assento. Parecia senhora de uma estranha confiança. A mesma confiança que outra moça da mesma idade dela tinha sentido há pouco mais de quinhentos anos na praça de uma cidade chamada Ruão.

Maria não pensou nisso. Ninguém no carro pensou nisso. As duas moças, uma chamada Joana, a outra Maria, nada tinham em comum a não ser essa súbita e estranha confiança que as socorreu quando precisavam. mas todos os policiais que estavam no carro sentiam-se constrangidos de ver Maria sentada ereta com o rosto luzindo à luz elétrica.

O negro de chapéu palheta saiu da sombra da casa e fez sinal para o primeiro carro. Subiu para o assento da frente, assim ficando dois ao lado do motorista. Os quatro carros pegaram a estrada principal que levava a La Havana pela beira-mar.

Apertado no assento da frente o negro enfiou a mão debaixo da camisa e tocou com dedos a guia de contas azuis. Manteve-se calado, os dedos segurando as contas. Antes de conseguir o emprego de alcagüete da polícia de La Havana era estivador, e ia receber cinqüenta dólares pelo trabalho daquela noite. Cinqüenta dólares é muito dinheiro em La Havana, mas o negro não podia mais pensar no dinheiro. Virou a cabeça um pouquinho e devagar quando entraram na estrada iluminada, o Malecon; olhou para trás e viu o rosto da moça luzindo, altivo, a cabeça erguida.

O negro assustou-se e envolveu com os dedos a guia de contas azuis e apertou forte. Mas o medo não passou porque ele estava agora exposto a uma magia bem mais antiga.

(Ernest Hemingway, Contos - Volume 3. Conjunto de trechos adaptados)
           

sábado, 29 de dezembro de 2012

PALAVRA MÁGICA DA ALMA

De repente, como se um destino médico me houvesse operado de uma cegueira antiga com grandes resultados súbitos, ergo a cabeça, da minha vida anónima, para o conhecimento claro de como existo. E vejo que tudo quanto tenho feito, tudo quanto tenho pensado, tudo quanto tenho sido, é uma espécie de engano e loucura. Maravilho-me do que consegui não ver. Estranho quanto fui e que vejo que afinal não sou.

Olho, como numa extensão ao sol que rompe nuvens, a minha vida passada; e noto, com um pasmo metafísico, como todos os meus gestos mais certos, as minhas ideias mais claras, e os meus propósitos mais lógicos, não foram, afinal, mais que bebedeira nata, loucura natural, grande desconhecimento. Nem sequer representei. Representaram-me. Fui, não o ator, mas o gesto dele.

Tudo quanto tenho feito, pensado, sido, é uma soma de subordinações, ou a um ente falso que julguei meu, por que agi dele para fora, ou de um peso de circunstâncias que supus ser o ar que respirava. Sou, neste momento de ver, um solitário súbito, que se reconhece desterrado onde se encontrou sempre cidadão. No mais íntimo do que pensei não fui eu.

Vem-me, então, um terror sarcástico da vida, um desalento que passa os limites da minha individualidade consciente. Sei que fui erro e descaminho, que nunca vivi, que existi somente porque enchi tempo com consciência e pensamento. E a minha sensação de mim é a de quem acorda depois de um sono cheio de sonhos reais, ou a de quem é liberto, por um terramoto, da luz pouca do cárcere a que se habituara.

Pesa-me, realmente me pesa, como uma condenação a conhecer, essa noção repentina da minha individualidade verdadeira, dessa que andou sempre viajando sonolentamente entre o que sente e entre o que vê.

É tão difícil escrever o que se sente quando se sente que realmente se existe, e que a alma é uma entidade real, que não sei quais são as palavras humanas com que possa defini-lo. Não sei se estou com febre, como sinto, se deixei de ter a febre de ser dormidor da vida. Sim, repito, sou como um viajante que de repente se encontre numa vila estranha sem saber como ali chegou; e ocorrem-me esses casos dos que perdem a memória e são outros durante muito tempo. Fui outro durante muito tempo - desde a nascença e a consciência -, e acordo agora no meio da ponte, debruçado sobre o rio, e sabendo que existo mais firmemente do que fui até aqui. Mas a cidade é-me incógnita, as ruas novas, e o mal sem cura. Espero, pois, debruçado sobre a ponte, que me passe a verdade, e eu me restabeleça nulo e fictício, inteligente e natural.

Foi um momento, e já passou. Já vejo os móveis que me cercam, os desenhos do papel velho das paredes, o sol pelas vidraças poeirentas. Vi a verdade um momento. Fui um momento, com consciência, o que os grandes homens são com a vida.  Recordo-lhes os actos e palavras, e não sei se não foram também tentados vencedoramente pelo Demónio da Realidade. Não saber de si é viver. Saber mal de si é pensar. Saber de si, de repente, como neste momento lustral, é ter subitamente a noção da mónada íntima, da palavra mágica da alma. Mas esta luz súbita cresta tudo, consume tudo. Deixa-nos nus até de nós.

Foi só um momento, e vi-me. Depois já não sei sequer dizer o que fui. E, por fim, tenho sono, porque, não sei porque, acho que o sentido é dormir.

(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego)
                    

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

MEIO DIA

Quando desvio os olhos
do desgastado caminho reto
é você quem vejo
sorrindo e me lembrando
que matéria de sonhos líricos
não é, ardente e perdida de amor
não é, sonhadora de ideais em flor
não é, coração que deseja a ruína
não é, esperança que não se afogou
não é, donzela de qual torre brônzea
não é, recompensa a quem não se compensa
não é, lua cheia querendo atenção
não é...
senão brisa,
inconstante,
que acaricia e se vai
quando quer
porque quer
porque veio
porque quando,
tão leve
e tão cheia de cicatrizes
e transparências
e zumbidos
e tons
e força
e simplicidade
e escárnio,
fio de navalha,
cruel,
acolhedora; e
impossível; e
proibida; e
desejável; e
atingível
quiçá apenas
ao maduro
coração
sob a luz viva
do meio dia
de uma vida

inteira.
        

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

UM POEMA É UMA CIDADE

um poema é uma cidade de ruas e esgotos
cheia de santos, heróis, mendigos, loucos,
cheia de bebida e banalidade,
cheia de chuva e trovão e períodos de
estiagem, um poema é uma cidade em guerra,
um poema é uma cidade perguntando ao relógio por quê,
um poema é uma cidade em chamas,
um poema é uma cidade armada
suas barbearias cheias de bêbados cínicos,
um poema é uma cidade onde deus passeia nu
pelas ruas como Lady Godiva,
onde cães latem de noite, e afugentam
a bandeira; um poema é uma cidade de poetas,
a maioria deles bem parecidos
e invejosos e amargos...
um poema é esta cidade agora,
50 milhas de lugar algum,
9:09 da manhã,
o gosto de bebida e cigarros,
sem polícia, sem amantes, andando pelas ruas,
este poema, esta cidade, fechando as portas,
sitiada, quase deserta,
melancólica sem lágrimas, envelhecendo sem piedade,
as montanhas rochosas,
o oceano como uma chama de alfazema,
uma lua destituída de grandeza,
uma música menor das janelas quebradas...

um poema é uma cidade, um poema é um país,
um poema é o mundo...
e agora eu ponho isso debaixo de uma redoma
para análise do editor maluco,
e a noite está em outro lugar
e senhoras grisalhas e abatidas fazem fila,
cão segue cão até o estuário,
os clarins trazem o cadafalso
enquanto homenzinhos anunciam as coisas
que não conseguem realizar.

(Charles Bukowski, Amor é Tudo que Dissemos que Não Era)
     

domingo, 9 de dezembro de 2012

HÖLDERLIN

O poeta está morto.
    Vida longa ao poeta!
...........................................

Baby, compra o jornal
E vem ver o sol
Ele continua a brilhar
Apesar de tanta barbaridade


Baby escuta o galo cantar
A aurora dos nossos tempos
Não é hora de chorar
Amanheceu o pensamento
O poeta está vivo
Com seus moinhos de vento
A impulsionar
A grande roda da história
Mas quem tem coragem de ouvir
Amanheceu o pensamento
Que vai mudar o mundo
Com seus moinhos de vento
Se você não pode ser forte
Seja pelo menos humana
Quando o papa e seu rebanho chegar
Não tenha pena
Todo mundo é parecido
Quando sente dor
Mas nú e só ao meio dia
Só quem está pronto pro amor
O poeta não morreu
Foi ao inferno e voltou
Conheceu os jardins do Éden
E nos contou
Mas quem tem coragem de ouvir
Amanheceu o pensamento
Que vai mudar o mundo
Com seus moinhos de vento
(Barão Vermelho, O Poeta Está Vivo)
 

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

O DEUS-FILÓSOFO

...toda nossa época, seja pela lógica ou pela epistemologia, seja por Marx ou por Nietzsche, procura escapar de Hegel: e o que procurei dizer a pouco a propósito do discurso é bem infiel ao logos hegeliano.

Mas escapar realmente de Hegel supõe apreciar exatamente o quanto custa separar-se dele; supõe saber até onde Hegel, insidiosamente, talvez, aproximou-se de nós; supõe saber, naquilo que permite pensar contra Hegel, o que ainda é hegeliano; e medir em que nosso recurso contra ele é ainda, talvez, um ardil que ele nos opõe, ao termo do qual nos espera, imóvel e em outro lugar.

...pode-se ainda filosofar lá onde Hegel não é mais possível? Pode ainda existir uma filosofia que não seja hegeliana? O que é não-hegeliano em nosso pensamento é necessariamente não-filosófico? E o que é anti-filosófico é, forçosamente, não-hegeliano? (...) Queria fazer da presença de Hegel um esquema de experiência da modernidade (é possível pensar à maneira hegeliana as ciências, a história, a política e o sofrimento de cada dia?), e queria, inversamente, fazer de nossa modernidade o teste do hegelianismo e, assim, da filosofia. Para Hyppolite, a referência era o lugar de uma experiência, de um enfrentamento em que não tinha nunca a certeza de que a filosofia sairia vitoriosa.

...a filosofia não [é] ulterior ao conceito; ela não precisa dar continuidade ao edifício da abstração, deve sempre manter-se retirada, romper com as generalidades adquiridas e recolocar-se em contato com a não-filosofia; deve aproximar-se, o mais possível, não daquilo que a encerra, mas daquilo que a precede, do que ainda não despertou para a sua inquietação; deve retomar para pensá-las, não para reduzi-las, a singularidade da história, as racionalidades regionais da ciência, a profundidade da memória na consciência; aparece, assim, o tema de uma filosofia presente, inquieta, móvel em toda sua linha de contato com a não-filosofia, não existindo senão por ela, contudo, e revelando o sentido que essa não-filosofia tem para nós.

(Michel Foucault, A ordem do discurso)
  

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

O AMOR ETHÔS-DAÍMON



A insensatez de um bom conselho

A insensatez que você fez
Coração mais sem cuidado
Fez chorar de dor o seu amor
Um amor tão delicado

Ah, por que você foi fraco assim
Assim tão desalmado
Ah, meu coração, quem nunca amou
Não merece ser amado

Vai, meu coração, ouve a razão
Usa só sinceridade
Quem semeia vento, diz a razão
Colhe sempre tempestade

Vai, meu coração, pede perdão
Perdão apaixonado
Vai, porque quem não pede perdão
Não é nunca perdoado

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Ouça um bom conselho
Eu lhe dou de graça
Inútil dormir que a dor não passa

Espere sentado
Ou você se cansa
Está provado, quem espera nunca alcança

Venha, meu amigo
Deixe esse regaço
Brinque com meu fogo
Venha se queimar

Faça como eu digo
Faça como eu faço
Aja duas vezes

antes de pensar

Corro atrás do tempo
Vim de não sei onde
Devagar é que não se vai longe

Eu semeio o vento
Na minha cidade
Vou pra rua e bebo a tempestade

 

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

PRÓLOGO NO HADES

- E aí, garoto, há quanto tempo.
- Quem é você?
- Não me reconhece?
- Não ouviu a minha pergunta?
- Ouvi.
- E me responde com outra?
- Não me reconhece mesmo? Sou o seu Medo, garoto, não se lembra?
- Já não adianta mais ter Medo.
- Do que você está falando?
- Já não é mais a minha estória.
- Não compreendo, Aquiles.
- Fui superado! É isso.
- Superado?
- Ulisses. Tornei-me um ATO de sua estória.
- É possível uma coisa dessas?
- Por que acha que estou aqui, nessa profunda e precoce escuridão?
- Você morreu e a estória continua?
- Exato. Não demora muito e Ulisses deve estar chegando.
- Morto?
- Não. Apenas de visita. Só agora compreendo: o PRIMEIRO ATO chegou ao fim e seu ápice foi a minha morte.
- Como sabe que ele virá?   
- Não sei como sei. Apenas sei.
- Se estiver errado?
- Estarei errado.
- Não se importa?
- Sinto que ele virá porque tenho algo para lhe dar.
- O quê?
- A máscara da consciência trágica. Talvez ela o ajude a conquistar algo que não tenha a morte como exigência.  

Ulisses se aproxima de Aquiles e Medo, sem ser visto por ambos:

- Divagando, Aquiles?
- Reconhecendo o seu valor, Ulisses.
- E quem é esse ao seu lado?
- Meu velho Medo.
- Medo?
- Sim, de falhar na conquista da glória eterna. E agora não consigo imaginar nada mais estúpido do que essa morte prematura.

Medo, constrangido, se afasta dos dois.

- Não seja tão duro consigo mesmo – diz Ulisses.
- Como eu poderia saber que haveria mais de um ATO?! Tudo poderia ter sido diferente. Sinto um gosto amargo.
- Não se torture. Ninguém poderia saber que haveria mais de um ATO, a não ser os deuses. É assim que vivem homens como nós.
- Vivem? Estou morto, Ulisses!
- Lamento por isso.
- Ok – diz Aquiles ao se acalmar. – Tenho algo para lhe dar.

Aquiles olha Ulisses nos olhos e, inesperadamente, o esbofeteia. Um estalo ecoa, seco. Ulisses se surpreende, espantado e cheio de ira:

- ENLOUQUECEU!? 

Ulisses revida o golpe tentando acertar Aquiles, mas sua mão atravessa o espectro imaterial do fantasma.

- Agora a outra face – diz Aquiles, calmamente, antes de esbofetear o outro lado do rosto de Ulisses, provocando mais um estalido.

Ulisses, com as duas faces vermelhas e inchadas, tenta em vão acertar Aquiles novamente. Chocado com a situação, grita:

- Maldito! Por que está me batendo?! Como consegue me acertar?!
- Acalme-se, Ulisses. Essa é a máscara da consciência trágica.
- Consciência trágica? Não preciso de nada que venha de você, garoto mimado! Tenho a deusa Atenas olhando por mim.
- A proteção dela não basta. Haverá outras bofetadas do destino contra as quais não terá a chance de revidar.  
- Revidarei sempre que for ultrajado!
- Mesmo que não tenha como acertar o alvo? Revidará contra si mesmo?

Ulisses, espantado com tudo aquilo, se cala sem resposta. Afasta-se de Aquiles e se senta sobre um pedregulho. Após alguns instantes de silêncio, se acalma. Aquiles se aproxima dele vagarosamente, coloca uma das mãos sobre seu ombro e diz:  

- Creio que esteja na hora de você partir. Para onde pretende ir agora?
- Estou tentando voltar para casa. Tenho sofrido muitas tribulações. Às vezes tenho a impressão de estar vivendo dentro de um pesadelo sem fim.
- Me parece que os deuses realmente nunca se cansam de brincar com nossos destinos.
- Por isso, antes de partir preciso encontrar Tirésias, o adivinho. Ele me dará instruções para que eu consiga voltar.
- Terá ele o poder de tornar mais fácil o seu retorno?
- Não. Apenas indicará o caminho. Tudo o mais depende da vontade dos deuses. Não vejo a hora de acordar deste pesadelo!
- Mas lembre-se, Ulisses, uma parte desse pesadelo é real: a tragédia é uma bofetada sem revide possível. Neste caso, acordar seria o mesmo que dormir para sempre. 

Ulisses fita Aquiles nos olhos e se cala. Após alguns instantes, diz: 

- Ouvirá minhas risadas quando eu pisar novamente os pés em Ítaca. Então, serão elas também suas. Serão nossas!
- Que assim seja! - diz Aquiles, com um sutil sorriso no canto da boca.
             

terça-feira, 6 de novembro de 2012

NOITE FRIA

- Escuta, Leslie, quero falar com você uns minutos.
- Tudo bem. Mas, merda, estou cansado. Passei o dia todo nas corridas.
- Mal, hum?
- Quando voltei ao estacionamento, depois que acabou, descobri que um filho da puta tinha arrancado meu para-choque ao sair. Isso é uma merda, você sabe.
- Como se saiu com os cavalinhos?
- Ganhei duzentos e oitenta dólares. Mas estou cansado.
- Tudo bem, não vou demorar muito.  
- Tudo bem. Que é que há? Sua velha? Por que não dá umas porradas pra valer em sua velha? Os dois vão se sentir melhor.
- Não, minha velha está bem. Só que... merda, eu não sei. Essas coisas, você sabe. Parece que não consigo entrar em nada. Parece que não me ligo. Tudo travado. Todas as cartas tomadas.
- Porra, isso é normal. A vida é um jogo unilateral. Mas você só tem vinte e sete anos, talvez dê sorte em alguma coisa, de algum modo.
- Que fazia você quando tinha minha idade?
- Estava pior que você. Ficava deitado no escuro à noite, bêbado, na rua, esperando que alguém me atropelasse. Não dei sorte.
- Não conseguia pensar em outra saída?
- Isso é uma das coisas mais difíceis, imaginar qual deve ser a primeira jogada da gente.
- É... tudo parece tão inútil.
- Nós matamos o filho de Deus. Acha que aquele sacana vai nos perdoar? Eu posso ser louco, mas sei que Ele não vai!
- Você só fica sentado aí, com seu roupão rasgado, e passa metade do tempo bêbado, mas eu sei que é mais são do que qualquer um que eu conheço.
- Opa, gosto disso. Você conhece muita gente?

Sonny apenas deu de ombros.

- O que eu preciso saber é se há uma saída. Há alguma espécie de saída?
- Garoto, não há saída. os analistas aconselham a gente a jogar xadrez ou colecionar selos ou jogar bilhar. Qualquer coisa menos pensar nos problemas maiores.
- Xadrez é um saco.
- Tudo é um saco! Não há como escapar. Sabe que alguns vagabundos de antigamente tatuavam no braço: "NASCIDO PARA MORRER". Por mais primitivo que pareça isso, é sabedoria fundamental.
- Que acha que os vagabundos tatuariam no braço hoje?
- Não sei. Na certa alguma coisa do tipo "JESUS BARBEIA*".
- Não podemos fugir de Deus, podemos?
- Talvez ele não possa fugir de nós.
- Bem, escuta, é sempre bom conversar com você. Sempre me sinto melhor depois de conversar com você.
- Quando quiser, garoto.

* "JESUS SHAVES" - trocadilho com saves: "Jesus Saves".

(Charles Bukowski, Numa Fria)
   

sábado, 27 de outubro de 2012

O ESPÍRITO LIVRE - 31

Nos anos da juventude, ainda veneramos a desprezamos sem a arte da nuance, que constitui nossa melhor aquisição na vida, e, como é justo, pagamos caro por atacar de tal modo com Sins e Nãos as pessoas e as coisas. Tudo se acha disposto para que o pior dos gostos, o gosto pelo incondicional, seja cruelmente logrado e abusado, até que o homem aprenda a pôr alguma arte nos sentimentos e, melhor ainda, a arriscar a tentativa do artificial: como fazem os veros artistas da vida. A ira e a reverência, que são próprias da juventude, parecem não descansar enquanto não tenham falseado as pessoas e coisas de maneira tal que possam nelas se desafogar: a juventude é, em si, algo que falseia e engana.

Mais tarde, quando a alma jovem, martirizada por puras desilusões, finalmente se volta desconfiada contra si mesma, ainda e sempre ardente e selvagem, inclusive na sua desconfiança e no seu remorso: como se enraivece então, como se dilacera impaciente, como se vinga por sua demorada auto-obcecação, como se ela tivesse sido uma cegueira voluntária! Nessa transição castigamos a nós mesmos, ao suspeitar do próprio sentimento; torturamos o entusiasmo com a dúvida, sim, sentimos até a boa consciência como um perigo, como que autodissimulação e fadiga da honestidade mais fina; e sobretudo tomamos partido, tomamos partido por princípio contra a "juventude". Um decênio depois; e compreendemos que tudo isso também era ainda juventude!

(Nietzsche, Além do bem e do mal)

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Durante a juventude, as mais áridas indiferenças, as mais cínicas grosserias, conseguimos encontrar-lhes desculpas de manias passionais e também sei lá de que sinais de inexperiente romantismo. Mais tarde, porém, quando a vida lhe mostrou muito bem tudo o que é capaz de exigir de cautela, de crueldade, de malícia para ser apenas, mal ou bem, mantida a trinta e sete graus, é que você percebe, você está pronto, bem colocado para compreender todas as porcarias que um passado contém. Basta, no final das contas, se contemplar escrupulosamente, a si mesmo, e aquilo que nos transformamos em matéria de imundice. Acaba-se o mistério, acaba-se a imbecilidade, toda a nossa poesia foi por nós devorada, já que vivemos até aquele momento. Neca de pitibiriba, a vida.


(Céline, Viagem ao fim da noite)
          

domingo, 14 de outubro de 2012

JOGO DIVINO


Um vagabundo caminha por uma estrada de terra, levantando poeira do chão. Leva sobre o rosto uma máscara que é o seu próprio rosto. É Dionísio, de fato, a sombra que se esconde por trás da máscara do rosto humano?

Há algo de inquietante na expressão da máscara desse vagabundo. Ele caminha sozinho, sujo e cansado. Um vagabundo nunca é só um vagabundo quando se ouve sua estória. Mas, é possível acreditar na estória de um vagabundo?

O vagabundo pára e esfrega os olhos com as mãos. Eis que surge diante dele uma criatura extraordinária. Corpo e patas de leão, cabeça e seios de mulher, além de asas. A criatura se dirige a ele enquanto circula ao seu redor:

- O que faz por aqui, imprudente viajante?
- Procuro por caminhos desconhecidos que me levem para longe dos que conheço.
- Vindo até a mim, acaba de descobrir o caminho que leva à morte. É o que dizem os tebanos.
- Por que acabaria com a minha vida? Está com fome?
- Jogo e diversão.
- Jogo e diversão?! Criatura insolente! Há pouco matei um homem e seu bando numa encruzilhada por terem sido insolentes.
- Não gosta de jogar, vagabundo?
- Abomino a vida temperada com malícia.
- Não há diversão maior para os deuses! Já jogou com os deuses, vagabundo?
- Pelo seu aspecto, criatura, mais parece um demônio.
- Não seja insolente, vagabundo imprecador! Sou uma esfinge. Minha natureza é parte do jogo. E a sua, vagabundo, é parte do quê?
- Sou filho de Pólibo, rei de Corinto. Meu nome é Édipo.
- Ah, ah, ah, ah! Sério, vagabundo, um príncipe? E o que faz tão longe da sua terra, vestindo farrapos?
- Não ria! Busco evitar uma desgraça. A maior delas.
- Desgraça? Esse é o nome com que os tebanos me chamam. Maus jogadores!
- Fujo de um oráculo. O mais terrível.
- Oráculo? Ora, então o vagabundo joga com os deuses?! Mestre da malícia! Veio até aqui porque está fugindo da própria sombra, vagabundo?
- Me deixe em paz! Vou ainda mais longe.

A esfinge pára de circular em volta de Édipo e estaca, colocando o próprio peso sobre as patas traseiras. Solta um rugido atordoante. Então, diz:

- Agora, vagabundo, sua vida depende do seu próprio destino – arma o bote, ameaçadoramente. – Decifra-me ou te devoro: onde está o seu cajado?
- Cajado? Não preciso de um cajado, demônio maldito!

A esfinge avança com fúria. Édipo leva a mão ao próprio rosto e esfrega os olhos. Quando olha em volta, já não mais a vê. Há, porém, um círculo de mulheres ao seu redor, todas elas nuas e com terra sobre os corpos, olhando-o como animais selvagens cujo território ele violara. Um grito atravessa o ar:

- Não temam! É apenas um leão. Mas eu sou Ágave, a caçadora de leões! PEGUEM-NO!

Todas avançam possessas, como se quisessem despedaçá-lo. Apavorado, rapidamente esfrega mais uma vez os olhos do rosto da máscara. Num instante, se vê de volta à estrada poeirenta, sozinho e de joelhos, como num transe. Permanece nesta posição por algum tempo. Levanta-se vagarosamente e recomeça a caminhar. Segue levando sobre o rosto uma máscara que é o seu próprio rosto.
 
Coro:
Do deserto, prodígios são delírio e imagem.
No cume da areia móvel, tanto distraem.
Mas pra que lado fica a Tebas sitiada?
Se é que o deserto, de fato, centro possui.
A esfinge, aquela de quem tanto se fala,  
É mortal enigma ou seu astuto espelho?
Pois se jogo o meu destino com os deuses
É porque deles recebi a imortal malícia?
Quando a fera ataca a fera – a si ataca!
Colheria, assim, da vida suas premissas?
   

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

...


Tudo que sabemos é uma impressão nossa, e tudo que somos é uma impressão alheia, melodrama de nós, que, sentindo-nos, nos constituímos nossos próprios espectadores activos, nossos deuses por licença da Câmara.

...

Saber que será má a obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. Essa planta é a alegria dela, e também por vezes a minha. O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou me não basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida.

...

Em nada me pesa ou em mim dura o escrúpulo da hora presente. Tenho fome de extensão do tempo, e quero ser eu sem condições.

(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego)
 

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

26/09/91, 12:16

Recebi as provas do novo livro hoje. Martin disse que vai dar umas 350 páginas. Acho que os poemas são bons. Assalto ao trem. Sou um velho trem a vapor, correndo para o hipódromo.

Levei umas duas horas para ler. Tenho certa prática nisso. As linhas rolam livremente e falam sobre o que quero que falem. Hoje, minha principal influência sou eu mesmo.

À medida que vivemos, caímos e somos destroçados por várias armadilhas. Ninguém escapa delas. Alguns até mesmo convivem com elas. A ideia é se dar conta que uma armadilha é uma armadilha. Se você está numa e não se dá conta, você está fodido. Acho que me dei conta da maioria das minhas armadilhas e escrevi sobre elas. É claro, nem tudo que escrevi foi sobre armadilhas. Existem outras coisas. Ainda assim, alguns dizem que a vida é uma armadilha. Escrever pode ser uma armadilha. Alguns escritores tendem a escrever o que agradou seus leitores no passado. Daí, estão fodidos. A criatividade da maioria dos escritores tem vida curta. Ouvem os elogios e acreditam neles. Há apenas um juiz final do que foi escrito, que é o escritor. Quando é influenciado pelos críticos, editores, leitores, está acabado. E, é claro, quando for influenciado por sua fama e sua fortuna, você pode mandá-lo flutuando rio abaixo junto com a merda.

Cada nova linha é um começo e não tem nada a ver com as linhas que a precederam. Todos começamos como novos, a cada vez. E, é claro, isto não tem nada de sagrado. O mundo pode viver muito mais facilmente sem livros do que sem encanamentos. E alguns lugares do mundo quase não tem nenhum dos dois. É claro, preferia viver sem encanamento, mas preciso dele pois estou doente.

Não há nada que impeça um homem de escrever, a não ser que ele impeça a si mesmo. Se um homem quer realmente escrever, ele o fará. A rejeição e o ridículo apenas lhe darão mais força. E quanto mais for reprimido, mais forte ele se torna, como uma massa de água forçando um dique. Não há perdas em escrever; faz seus dedos rirem enquanto você dorme; faz você andar como um tigre; ilumina seus olhos e coloca você frente a frente com a Morte. Você vai morrer como um lutador, será reverenciado no inferno. A sorte da palavra. Vá com ela, mande-a. Seja o Palhaço nas Trevas. É engraçado. É engraçado. Mais uma linha...

(Charles Bukowski, O capitão saiu para almoçar e os marinheiros tomaram conta do navio)
             

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

MISTO QUENTE VIII

Eram necessárias duas pessoas para jogar, e eu não ia jogar com o pervertido que era dono do lugar. Então avistei um garotinho mexicano, de oito ou nove anos. Ele veio caminhando pelo corredor. Ele veio caminhando pelo corredor. Um menino mexicano inteligente e de boa aparência.

- Ei, garoto?
- Sim, senhor?
- Quer jogar comigo?
- De graça?
- Claro. Estou pagando. Escolha seu lutador.

Ele deu a volta, olhando através do vidro. Parecia bastante compenetrado. Então ele disse:

- Está bem. Vou escolher o cara de calção vermelho. Ele parece melhor.
- Beleza.

O garoto foi para seu lado e olhou através do vidro. Olhava para seu lutador e então olhou para mim.

- Senhor, não sabe que tem uma guerra acontecendo?
- Sim.

Ficamos ali.

- O senhor precisa colocar uma moeda – disse o garoto.
- O que você está fazendo num lugar destes? – perguntei a ele. – Como você não está na escola?
- Hoje é domingo.

Coloquei a moeda de dez centavos. O garoto começou a mexer seus controles e eu os meus. O garoto tinha feito uma má escolha. O braço esquerdo do seu lutador estava quebrado e só subia até a metade. Jamais chegaria no botão do queixo do meu lutador. Tudo que o garoto tinha era uma mão direita. Decidi não me apressar. Meu cara usava calção azul. Movia-o em todas as direções, fazendo alguns ataques surpresa. O garoto mexicano era incrível, ele seguia tentando. Deixou de lado o braço esquerdo e apenas apertava o gatilho do braço direito. Lancei o calção azul num ataque mortal, apertando os dois gatilhos. O garoto continuava atacando com o braço direito do calção vermelho. Subitamente o calção azul caiu. Desabou com tudo, exibindo um ruído metálico.

- Peguei o senhor – disse o garoto.
- Você ganhou – eu disse.

O garoto ficou faceiro. Não tirava os olhos do calção azul ali estendido.

- Quer repetir a luta, senhor?

Fiquei calado, não sei por quê.

- Está sem dinheiro, senhor?
- Oh, não.
- Certo, então vamos lutar.

Coloquei outra moeda e o calção azul ficou de pé. O garoto começou a apertar seu gatilho e o braço do calção vermelho não parava de socar. Deixei o calção azul afastado por um momento, apenas contemplando. Então fiz um aceno com a cabeça para o garoto. Entrei em ação com o calção azul. Os dois braços socando com tudo. Senti que eu precisava ganhar. Senti que aquilo era muito importante. Não sabia por que era importante e fiquei pensando, por que acho que isso é tão importante?

Enquanto outra parte de mim respondia, é porque é.

Então o calção azul voltou a cair estatelado, emitindo o mesmo ruído metálico. Olhei para ele lá, caído de costas sobre o pequeno tablado de veludo verde.

Depois disso, dei meia volta e sai caminhando.

(Charles Bukowski)
                                                                              

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

MISTO QUENTE VII

Finalmente chegou o dia do Baile de Formatura. Foi realizado no ginásio feminino com música ao vivo, uma banda de verdade. Não sei bem por que, mas andei até lá naquela noite, os quatro quilômetros que separavam a escola da casa dos meus pais. Fiquei do lado de fora, no escuro, olhando para o baile, através das janelas gradeadas, completamente admirado. Todas as garotas pareciam extremamente crescidas, imponentes, adoráveis, trajando vestidos longos, e todas exalando beleza. Quase não as reconheci. E os garotos em seus smokings estavam muito bem, dançavam com perfeição, cada qual segurando uma garota pelos braços, seus rostos pressionados contra os cabelos delas. Todos dançavam com extrema graça, e a música vinha alta e límpida e boa, potente.

Então vislumbrei o reflexo do meu rosto a admirá-los – marcado por espinhas e cicatrizes, minha camisa surrada. Eu era como uma fera da selva atraída pela luz, olhando para dentro. Por que eu tinha vindo? Sentia-me mal. Mas continuava assistindo a tudo. A dança terminou. Houve uma pausa. Os casais trocavam palavras com facilidade. Era algo natural e civilizado. Onde eles haviam aprendido a conversar e a dançar? Eu não podia conversar ou dançar. Todo mundo sabia alguma coisa que eu desconhecia. As garotas eram tão lindas; os rapazes, tão elegantes. Eu ficaria aterrorizado só de olhar para uma daquelas garotas, o que dizer ficar sozinho em sua companhia. Mirá-la nos olhos ou dançar com ela estaria além das minhas forças.

E ainda assim eu tinha a consciência de que o que via não era tão simples e nem bonito como aparentava ser. Havia um preço a ser pago por aquilo tudo, uma falsidade generalizada na qual facilmente se poderia acreditar e que poderia ser o primeiro passo para um beco sem saída.

(Charles Bukowski)
        

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

MISTO QUENTE VI

No dia seguinte, deitado na cama, cansei de esperar pelos aviões e encontrei um enorme caderno amarelo que deveria ter sido usado para as atividades do ensino médio. Estava em branco. Encontrei uma caneta. Fui para a cama com o caderno e a caneta. Fiz alguns desenhos. Desenhei mulheres usando saltos altos, com as pernas cruzadas e as saias erguidas.

Então comecei a escrever. Era sobre um aviador alemão durante a Segunda Guerra Mundial. Barão Von Himmlen. Pilotava um Fokker vermelho. E não era popular entre seus colegas aviadores. Não falava com eles. Bebia sozinho e falava sozinho. Não ligava para mulheres embora todas o amassem. Ele estava acima desse tipo de coisa. Tinha outras ocupações. Estava ocupado em abater aviões aliados. Já havia derrubado 110, e a guerra ainda nem tinha terminado. Seu Fokker vermelho, que ele chamava de “Pássaro da morte de outubro”, era conhecido em todas as partes. Até mesmo os homens das tropas inimigas o conheciam porque freqüentemente ele passava em vôos rasantes sobre suas cabeças, enganando o fogo da artilharia e rindo, lançando-lhes garrafas de champanhe em pequenos pára-quedas. O Barão Von Himmlen nunca era atacado por menos de cinco aviões aliados de cada vez. Era um homem muito feio, o rosto coberto de cicatrizes, mas se você olhasse para ele por um bom tempo acabaria por descobrir sua beleza – ela estava nos olhos, no seu estilo, na sua furiosa solidão.

Escrevi páginas e mais páginas sobre os encarniçados combates aéreos do Barão: sobre como ele derrubava três ou quatro aviões e voava de volta, seu Fokker vermelho em frangalhos. Ele aterrissava, saltava do avião ainda em movimento e seguia para o bar, onde pegava logo uma garrafa e se sentava sozinho, mandando as doses goela abaixo. Ninguém bebia como o Barão. Os outros apenas ficavam no bar a observá-lo.

O Barão continuava abatendo avião atrás de avião. Ninguém parecia entendê-lo e ninguém sabia como ele se tornara tão habilidoso com o Fokker vermelho, sem falar em suas outras peculiaridades. O modo como lutava. Ou o jeito gracioso que tinha ao caminhar. E assim ele seguia. Às vezes não contava com a sorte ao seu lado.

O Barão seguiu fazendo coisas mágicas. Metade do caderno havia sido preenchida com o Barão Himmlen. Fazia-me bem escrever sobre ele. Um homem precisava de alguém. Não tinha ninguém por perto, assim você precisava inventar uma pessoa, criar um homem do modo como ele deveria ser. Isso não era faz-de-conta ou enganação. A outra alternativa sim é que era faz-de-conta e enganação: viver a sua vida sem um homem desses por perto.

(Charles Bukowisk)
                                             

sexta-feira, 27 de julho de 2012

MISTO QUENTE V

Fui até o banheiro, fiz um chumaço de papel higiênico e tentei estancar o sangramento. Tirei o papel das minhas costas e dei uma olhada. Estava empapado. Peguei mais papel e segurei ali por algum tempo. Então peguei o iodo. Passava o remédio nas costas, tentando alcançar o local do machucado. Era difícil. Finalmente consegui. De qualquer modo, quem já ouviu falar de costas infeccionadas? Ou o cara vive ou o cara morre. As costas eram uma coisa que os idiotas nunca pensavam em amputar.

Caminhei de volta para o quarto e me deitei na cama, puxando a coberta até o pescoço. Fiquei olhando para o teto enquanto falava com meus botões.

Tudo bem, Deus, digamos que Você esteja mesmo aí. Foi você que me colocou nesta. Você queria me testar. E que tal se eu O testasse? E que tal se eu dissesse que você não está aí? Você já me expôs ao teste supremo me dando esses pais e estas espinhas. Acho que passei no Seu teste. Sou mais durão do que Você. Se Você tivesse coragem de descer aqui, agora, eu cuspiria na Sua cara, se é que Você tem cara. E Você caga? O padre nunca respondeu a essa questão. Ele nos disse para não duvidarmos. Duvidar do quê? Acho que você já passou dos limites comigo, por isso, desafio-O a descer até aqui para que eu possa aplicar meu teste em Você!

Esperei. Nada. Esperei por Deus. Esperei infinitamente. Acho que peguei no sono.

Nunca dormia de costas. Mas quando acordei estava nessa posição e fiquei surpreso. Minhas pernas estavam dobradas e meus joelhos erguidos, dando às cobertas um aspecto de montanha. E quando olhei para essa montanha de cobertor, vi dois olhos me encarando. Eram olhos sombrios, negros, vazios... olhando para mim, encobertos por um capuz, um capuz negro e pontudo, como os usados pela Ku-Klux-Klan. Miravam-me fixamente, aqueles olhos negros e vazios, e não havia nada que eu pudesse fazer. Eu estava realmente apavorado. É Deus, pensei, mas Deus não podia ter aquela aparência.

Eu não podia parar de olhar. Não conseguia me mover. Aquilo simplesmente ficou me olhando a partir do monte que meus joelhos formavam no cobertor. Eu queria sair dali. Queria que aquilo desaparecesse. Seu aspecto era ameaçador e sombrio e eu podia sentir a sua força.

Pareceu ficar ali parado durante horas, só me encarando.

Então, se foi...

Fiquei sentado pensando no que tinha acontecido.

Não conseguia acreditar que aquilo pudesse ser Deus. Vestido daquela maneira.

Devia ser um truque vagabundo. Havia sido uma ilusão, obviamente.

Fiquei pensando no assunto por uns dez ou quinze minutos, então me ergui e fui pegar a pequena caixa marrom que minha avó me dera muitos anos atrás. Dentro dela havia pequenos rolos de papel com citações da Bíblia. Cada pequeno rolo ficava dentre de um compartimento próprio. Era esperado que o sujeito fizesse uma pergunta e então puxasse um dos rolinhos que supostamente conteria a resposta desejada àquela questão. Eu já tinha tentado utilizar a caixinha anteriormente, e não me tinha sido de nenhuma utilidade. Agora, tentei novamente. Perguntei à caixa marrom:

- Qual o significado do que aconteceu? O que eram aqueles olhos?

Puxei um dos papeizinhos e o desenrolei. Era muito pequeno e difícil de manusear. Ao conseguir desenrolá-lo, li:

DEUS O ABANDONOU.

Enrolei o papelzinho e o pus de volta em seu compartimento na caixa marrom. Não podia acreditar naquilo. Voltei para cama e fiquei pensando. Era simples demais, cru demais. Não dava para acreditar. Pensei em me masturbar para voltar à realidade. Continuava sem poder acreditar. Fiquei de pé e comecei a desenrolar todos os papeizinhos da caixa marrom. Procurava por aquele que dizia DEUS O ABANDONOU. Desenrolei todos. Nenhum deles trazia aquela mensagem. Li um por um e nenhum dizia aquilo. Enrolei todos novamente e os coloquei em seus compartimentos dentro da pequena caixa marrom.

(Charles Bukowski)
     

quarta-feira, 25 de julho de 2012

MISTO QUENTE IV

Tive sorte no dia seguinte. Chamaram meu nome. Era um médico diferente. Tirei minha roupa. Ele voltou para mim uma luz quente e branca e me examinou. Eu estava sentado na beira da cama.

- Hummm, hmmmm – ele disse –, uh huh...

Fiquei sentado ali.

- Há quanto tempo você tem isso?
- Há dois anos. Vem piorando cada vez mais.
- Ah-hã.

Continuou examinando.

- Agora, deite-se com a barriga para baixo. Volto logo.

Alguns momentos passaram e subitamente a sala estava cheia de pessoas. Eram todos médicos. Pelo menos pareciam e falavam como médicos. De onde eles tinham vindo? Eu tinha pensado que quase não havia médicos no Hospital Geral do Condado de Los Angeles.

- Acne vulgaris. O pior caso que já vi em todos os meus anos de prática!
- Fantástico!
- Incrível!
- Olhem só o rosto!
- O pescoço!
- Acabei de examinar uma garota com acne vulgaris. Suas costas estavam cobertas. Ela chorava. Sabem o que me disse: “Como vou conseguir arranjar um homem? Minhas costas ficarão marcadas para sempre. Quero me matar!”. E agora veja só esse camarada! Se ela pudesse vê-lo, saberia que realmente não tem nada do que reclamar!

Seu puto imbecil, pensei, não percebe que posso ouvir o que você está dizendo? Como será que um homem chega a médico? Será que eles aceitam qualquer um?

- Ele está dormindo?
- Por quê?
- Parece bastante tranqüilo.
- Não, não acho que ele esteja dormindo. Você está dormindo, meu garoto?
- Sim.

Continuaram movendo a luz quente e branca sobre diversas partes do meu corpo.

- Vire-se.
- Olhem, há lesões dentro da boca!
- Bem, como vamos tratar isso?
- A agulha elétrica, acho...
- Sim, claro, a agulha elétrica.
- Sim, a agulha.

Estava decidido.

(...)

Voltou a me cravar a agulha. Então a retirou e cravou numa terceira espinha. Dois outros homens haviam entrado e estavam parados, assistindo a tudo. Provavelmente eram médicos. Mais uma agulhada.

- Nunca vi ninguém agüentar as agulhadas dessa maneira – disse um dos homens.
- Ele não demonstra nenhuma dor – disse o outro.
- Por que vocês não vão beliscar o rabo de alguma enfermeira, rapazes? – perguntei a eles.
- Escute, filho, você não pode falar com a gente dessa maneira!

A agulha me perfurou novamente. Não respondi.

(Charles Bukowisk)
                            

terça-feira, 24 de julho de 2012

MISTO QUENTE III

Um dia eu estava por ali parado, esperando como de costume, de mal com o pessoal, mas a fim de fazer as pazes com eles, quando Gene se aproximou de mim correndo:

- Ei, Henry, venha cá!
- O que é?
- VENHA DUMA VEZ!

Gene começou a correr e fui atrás dele. Seguimos até o quintal dos Gibson. Os Gibson tinham um muro alto de tijolo ao redor de todo o pátio dos fundos.

- VEJA! ELE ESTÁ COM O GATO ENCURRALADO! ELE VAI MATÁ-LO!

Havia um gatinho branco com as costas voltadas para um dos cantos do muro. Não podia subir pelos tijolos nem fugir em qualquer outra direção. Suas costas estavam arqueadas e ele bufava, as garras prontas. Era, no entanto, pequeno demais para dar conta do buldogue de Chuck, Barney, que rosnava e se aproximava mais e mais. Tive a impressão de que aquele gato havia sido colocado ali pelos garotos e de que somente depois o buldogue fora levado até ali. Sentia isso intensamente pelo modo como Chuck e Eddie e Gene acompanhavam a cena: o aspecto deles os incriminava.

- Caras, vocês armaram essa – eu disse.
- Não – rebateu Chuck –, a culpa é do gato. Ele veio até aqui. Deixe que ele se vire agora para escapar.
- Odeio vocês, seus desgraçados – eu disse.
- Barney vai matar o gato – disse Gene.
- Barney vai fazer picadinho do gato – disse Eddie – Ele está com medo das unhas do gato, mas quando avançar tudo estará encerado.

Barney era um buldogue grande e marrom com as bochechas flácidas e cheias de baba. Ele era gordo e meio abobalhado e tinha olhos castanhos inexpressivos. Rosnava constantemente e ia avançando devagar, os pêlos do pescoço e das costas eriçados. Eu sentia vontade de dar um chute no seu rabo estúpido, mas percebi que ele me arrancaria a perna fora. O cão estava completamente tomado por um espírito assassino. O gato branco sequer tinha terminado de crescer. O bichinho soltava um silvo agudo e esperava, comprimido contra o muro, uma criatura belíssima, tão limpa.

O cachorro avançou lentamente. Por que esses caras precisavam disso? Não era uma questão de coragem, era apenas um jogo sujo. Onde estavam os adultos? Onde estavam as autoridades? Para me acusar de alguma coisa estavam sempre por perto. Onde tinham se enfiado agora?

Pensei em intervir na cena, apanhar o gato e sair correndo, mas eu não tinha forças. Tinha medo que o buldogue me atacasse. A consciência de que me faltava coragem para fazer o que era necessário fez com que me sentisse péssimo. Comecei a ficar enjoado. Estava fraco. Eu não queria que aquilo acontecesse, ainda que eu não conseguisse encontrar nenhuma maneira de evitar o massacre.

- Chuck – eu disse – deixe o gato ir, por favor. Chame o seu cachorro.

Chuck não respondeu. Continuou apenas observando. Então disse:

- Vai, Barney, pega ele! Pegue o gato!

Barney avançou e de súbito o gato deu um salto. O bichano se transformara numa furiosa mancha branca, toda silvos, garras e dentes. Barney recuou e o gato voltou novamente para o muro.

- Pegue ele, Barney – disse Chuck novamente.
- Cale a boca, maldito – disse a ele.
- Não fale comigo desse jeito – retrucou.

Barney começava a avançar novamente.

- Caras, vocês armaram tudo isso aqui – eu disse.

Ouvi um leve ruído atrás de nós e voltei a cabeça. Vi o velho sr. Gibson a nos observar de trás da janela do seu quarto. Ele também queria que o gato fosse morto, assim como os garotos. Por quê?

O velho sr. Gibson era nosso carteiro. Usava dentadura. Tinha uma esposa que passava o tempo inteiro em casa. Ela saia apenas para botar o lixo na rua. A sra. Gibson sempre usava uma rede sobre os cabelos e sempre trajava uma camisola, roupão de banho e chinelos.

Então apareceu a sra. Gibson, vestida como de costume, e se postou ao lado do marido, esperando pela carnificina. O sr. Gibson era um dos poucos homens da vizinhança que tinha um emprego, mas ainda assim ele precisava ver o gato ser morto. Gibson era como Chuck, Eddie e Gene.

Havia muitos deles.

O buldogue se aproximou. Eu não podia ver aquele crime. Senti uma vergonha profunda por abandonar o gato à própria sorte. Havia sempre a chance de que o bichano pudesse escapar, mas eu sabia que os garotos não deixariam isso acontecer. Aquele gato não enfrentava apenas o buldogue, ele enfrentava a Humanidade inteira.

Dei meia volta e me afastei, para fora do quintal, passando pela entrada do carro e chegando à calçada. Caminhei em direção ao local onde eu morava e lá, no pátio em frente à sua casa, meu pai estava plantado, me esperando.

- Onde você estava? – ele perguntou.

Não respondi.

- Já pra dentro – ele disse – E pare de parecer tão infeliz ou lhe darei algo para que você realmente sinta o que é infelicidade!

(Charle Bukowski)
           

segunda-feira, 23 de julho de 2012

MISTO QUENTE II

Entreguei meu ensaio na segunda-feira. Na terça, a sra. Fretag se dirigiu à classe:

– Li os ensaios de todos vocês sobre a visita de nosso ilustríssimo presidente a Los Angeles. Eu estava lá. Alguns de vocês, pelo que pude notar, não puderam comparecer ao evento por uma ou outra razão. Para aqueles entre vocês que não puderam estar lá, gostaria de ler o ensaio escrito por Henry Chinaski.

Um terrível silêncio se abateu sobre a turma. Eu era de longe o aluno mais impopular da classe. Era como se todos eles tivessem levado uma facada no coração.

– Este é um texto muito criativo – disse a sra. Fretag e começou a ler meu ensaio.

As palavras me soavam bem. Todos escutavam. Minhas palavras enchiam a sala, corriam de um lado a outro pelo quadro negro, ricocheteavam no teto e cobriam os sapatos da sra. Fretag, se amontoando no chão. Algumas das garotas mais lindas da classe começaram a me lançar olhares furtivos. Os caras durões estavam putos da cara. Seus ensaios não valiam merda nenhuma. Eu bebia de minhas próprias palavras como se fosse um homem sedento. Comecei, inclusive, a acreditar que elas representassem a verdade. Vi Juan sentado ali como se eu lhe tivesse esmurrado a cara. Estiquei as pernas e me recostei na cadeira. Logo, porém, estava tudo terminado. 

– Com essa grande redação – disse a sra. Fretag –, encerro a aula.

Todos se levantaram e começaram a guardar seus materiais.  

– Você não, Henry.

Sentei-me na cadeira, e a sra. Fretag ficou ali, me encarando. Então disse:

– Henry, você estava lá?

Tentei encontrar uma resposta. Nada me ocorreu. Eu disse:

– Não, eu não estava lá.

Ela sorriu.

– Isto faz com que seu ensaio seja ainda mais notável.
– Sim, madame...
– Você já pode ir, Henry.

Levantei-me e deixei a sala. Fui para casa. Então era isso que eles queriam: mentiras. Mentiras maravilhosas. Era disso que precisavam. As pessoas eram idiotas. Será fácil para mim. Olhei em volta. Juan e seu comparsa não estavam me seguindo. As coisas estavam melhorando.

(Charles Bukowski)
        

sexta-feira, 20 de julho de 2012

MISTO QUENTE I

No dia seguinte, durante a aula, passei o tempo todo com isso na cabeça. Olhava para as garotinhas e me imaginava fazendo com elas. Faria com todas elas e teríamos bebês, eu encheria o mundo com caras como eu, grandes jogadores de beisebol, marcadores de home runs. Nauqele dia, logo depois da aula terminar, a professora, sra. Westphal, disse:

– Henry, você poderia ficar mais um pouco?

A sineta tocou, e as outras crianças foram embora. Fiquei sentado e esperei. A sra. Westphal corrigia uns papéis. Pensei: talvez ela queira fazer comigo. Me imaginei erguendo o vestido dela e olhando para o seu buraco.

– Tudo bem, sra. Westphal, estou pronto.

Ela ergueu os olhos das folhas.

– Está certo, Henry. Em primeiro lugar, apague todos os quadros negros. Depois leve os apagadores até a rua e tire o pó deles.

Fiz o que mandou, então voltei a sentar na minha classe. A sra. Westphal continuava lá, corrigindo os papéis. Ela estava com um vestido azul apertado, grandes argolas douradas nas orelhas, tinha um nariz pequeno e usava óculos sem armação. Esperei e esperei. Então, eu disse:

– Sra. Westphal, por que a senhora me manteve aqui depois da aula?

Ergueu o rosto e me encarou. Seus olhos eram verdes e profundos.

– Mantive-o até mais tarde porque às vezes você é mau.
– Ah, é? – sorri.

A sra. Westphal me olhou. Tirou seus óculos e continuou me encarando. Suas pernas estavam ocultas pela mesa. Eu não podia ver seu vestido.

– Você estava muito desatento hoje, Henry.
– É?
– E não fale comigo desse jeito. Você está se dirigindo a uma dama!
– Oh, claro...
– Não seja insolente comigo!
– Como a senhora quiser.

Ela se levantou e saiu detrás da sua mesa. Caminhou por entre as classes e sentou-se sobre a mesa à minha frente. Tinha pernas maravilhosas, longas, cobertas por meias de seda. Sorriu para mim, esticou uma das mãos e tocou num dos meus pulsos.

– Seus pais não lhe dão muito amor, não é verdade?
– Não preciso desse tipo de coisa – respondi.
– Henry, todos precisam ser amados.
– Não preciso de nada.
– Pobre garoto.

Ficou de pé, veio até minha classe e tomou devagar minha cabeça entre suas mãos. Curvou-se e me estreitou contra os seios. Estiquei-me e enlacei suas pernas.

– Henry, você precisa parar de brigar com todo mundo! Queremos ajudá-lo.

Agarrei as pernas da sra. Westphal com mais força.

– Tudo bem – eu disse –, vamos trepar!
O que você disse?
– Eu disse vamos trepar!

Olhou-me por um longo tempo.

– Henry, nunca vou dizer para ninguém o que você me disse, nem para o diretor, nem para os seus pais, para ninguém. Mas eu nunca mais, nunca mais quero que você me diga isso outra vez, entende?
– Entendo.
– Tudo bem. Você pode ir para casa agora.

Levantei e caminhei em direção à porta. Quando a abri, a sra. Westphal disse:

– Boa tarde, Henry.
– Boa tarde, sra. Westphal.

Segui pela rua pensando no acontecido. Senti que ela estava a fim de trepar, mas tinha medo por eu ser jovem demais para ela, medo que meus pais e o diretor pudessem descobrir. Tinha sido excitante ficar sozinho com ela na sala vazia. Essa coisa de trepar era bacana. Dava às pessoas mais coisas em que pensar.

(Charles Bukowski)