quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

O RIO DE PARMÊNIDES

Parmênides entra na água.

PARMÊNIDES: Quem é você, rio que me banha?

HERÁCLITO: Heráclito é meu nome.

PARMÊNIDES: Agradeço pela gentileza.

HERÁCLITO: Não carece agradecer.

PARMÊNIDES: Agradeço mesmo assim.

HERÁCLITO: Ora, não compreende.

PARMÊNIDES: Claro que compreendo! Você é um rio modesto. Mas ainda assim, insisto. Agradeço de coração.

HERÁCLITO: Agradeço também a sua gentileza. Mas ainda assim tenho que dizer o que digo a todos que, iguais a você, não entendem até que eu diga.

PARMÊNIDES: Ora, nem tão modesto assim, heim... mas, vá lá. Diga, então, o que a tudo esclarece.

HERÁCLITO: Não carece agradecer porque não seria possível agradecer-me. Apenas isso.

PARMÊNIDES: E que espécie de rival de Zeus todo poderoso é você, cuja satisfação não se sacia?

HERÁCLITO: Sou devoto do Zeus ajuntador de nuvens tanto quanto você, Parmênides meu velho. Sou um rio, sou parte da grande família. Sou também o fluxo incessante que passa por um ponto fixo. Carrego, levo para longe, desbravo. Para aqueles que resistem, imponho pressão. Não uma pressão exclusivamente minha. Uma pressão vinda de uma afirmação e de uma negação. Dessa pressão, cria-se. O seu banho, por exemplo.

PARMÊNIDES: Que me limpa bem o sei e por isso lhe agradeci. Mas meu agradecimento foi rejeitado. O porquê disso ainda não se explicou.

HERÁCLITO: Ora, homem, banho-te infinitas vezes num único banho! Não existo a não ser em eterno movimento. Não é possível me agradecer infinitas vezes. Portanto, não carece. Fique à vontade.

PARMÊNIDES: Então agora agradeço pelas eternas e infinitas vezes que já me banhou, pela que me banha agora e pelas que ainda irá me banhar. O que acha?

HERÁCLITO: Já não sou mais o mesmo que ouviu. Poderia, por favor, repetir infinitas vezes?

PARMÊNIDES: Estaria eu abrigado a tomar, em toda a minha vida, um único banho para cumprir tal tarefa. E ainda assim, morreria limpo, mas não conseguiria cumpri-la.

HERÁCLITO: Portanto, guarde sua cortesia aos que, como você, precisam reconhecer o que são. Quem são. Apenas sou.

PARMÊNIDES: Compreendo o que diz. Contudo, ainda me inquieto. Por que não haver cortesia, mesmo entre tão distintos interlocutores?

HERÁCLITO: Interlocutores?

PARMÊNIDES: Sim. Estamos conversando, não?

HERÁCLITO: Estamos?

PARMÊNIDES: Ora, estamos! – após pequena pausa – Não estamos?

HERÁCLITO: Já lhe disse, homem, e repito. Sou um rio. Se conversa comigo é porque conversa consigo mesmo. Fez a você sujeito e tomou-me por seu objeto. Fez-me perguntas e atribuiu-me respostas. Mas, de fato, apenas sou. Rio.

Parmênides continuou o seu banho. Ficou pensativo durante algum tempo. Quando já se sentia limpo, disse:

PARMÊNIDES: Bom, neste caso, agradeço de coração, paciente e bem aventurado rio.

HERÁCLITO: Disponha, Parmênides meu velho.

Parmênides, com um sutil sorriso de satisfação, calou-se. Num leve movimento, suspendeu os pés do fundo.Começou a boiar e a ser levado pela correnteza. Mais do que limpá-lo, o banho no rio de Parmênides fez dele rio e desaguou seus pés em novas paragens.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

FUI BEBER COM O JOVEM RIMBAUD!

Quando fores dormir, noite alta,
Diga ao sono, por mim, que não estou
Mas console-o, se de mim sinta falta
Fui beber com o jovem Rimbaud!

Uso bom faça do travesseiro
Elogie-o a gentil maciez
Mas em sonho me alcance o isqueiro
Que consome esta vil timidez

Co’ cigarro acesso, palavras
Multiplicam as nuvens no céu
Negro manto precede a alvorada
Longa escada conduz ao que é meu

À cerveja e ao seu colarinho
Ébria noite envolvendo o silêncio
Dormes tu, ó razão, e o vizinho
Mas no peito arde alegre o incêndio

Quente brasa do amor que cultiva
Descampado em solo sem cerca
Se te amo, é porque estás viva
Ó quimera, que a lua festeja!

Toda cheia de uivos anônimos
Traz na luz o que resta do dia
Quase nada senão largo ânimo
De tragar o mel da boemia

Noite alta, a cama vazia,
Quadrilátero em que não estou
Dorme só sua espuma macia
Já não durmo, bebamos Rimbaud!

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

AS RUGAS DOS ENIGMAS

O tempo é a mais estranha das criaturas. Talvez porque nem mesmo seja uma criatura. De qualquer forma, é estranho. Estranho e, por isso mesmo, fascinante. Às vezes ele me chama para brincar. Eu mesmo não dou muita atenção, já que passei da época de fazer estripulias dessas que tanto o agradam. Mas não raras vezes existe em mim uma criança, ora tirana, ora um camaradinha porreta, que se dispõe a não deixa-lo brincando sozinho. Há algum tempo venho aprendendo que o tempo está em tudo, mesmo na criança que não cresce. Por isso, que vá a criança brincar sem culpa enquanto eu, o adulto, me encarrego das rugas dos enigmas. Ela foi. Quando voltou, bastou ouvir seu relato para redescobrir que enigmas são coisas para serem apreciadas por crianças enquanto brincam. Eis o que ela me disse:

Brinquei de macaco de imitação a tarde inteira. Ora o tempo disparava feito uma flecha que nunca atinge o seu alvo, ora se fingia de tartaruga que, apesar da lentidão, era impossível de ser ultrapassada. Em seguida se fazia de sapo e dava pulos largos demais para as minhas pernas, depois estacava, depois dava uma sequência de pulos curtos, estacava de novo, e pulava e estacava e pulava. Depois disparava feito flecha e, então, ralentava novamente. De repente, ele subiu em linha reta feito tiro de revolver apontado para o céu. Não me fiz de rogado e sai voando no seu encalço. Vendo que eu tinha certa intimidade com a imensidão atmosférica, ele fez uma graciosa curva em parábola, lá perto dos dedos da mão de Atlas, e se pôs numa frenética queda livre, rodopiando em espiral. É lógico, fiz o mesmo. Na descida, me senti como um marujo de primeira viagem que vomita o próprio estômago por causa do balanço do mar. Mesmo assim, não parei de cair. Caia e rodopiava com a cabeça voltada para o chão e as pernas para o céu. Fui adquirindo mais velocidade e cada vez me aproximando mais dele. Acho que ele deve ter se lembrado da antiga estória sobre um garoto que abusou da autonomia de vôo das próprias asas de cera, porque pela velocidade que eu estava, se ele não parasse de cair e pegasse uma ascendente, era capaz de eu ter me esborrachado no chão. Tornei, então, a subir junto com ele até pousarmos, ao mesmo tempo, no chão. Ele disse que eu era bastante corajoso, mas que ainda tinha muito o que aprender. Não sei o quê?! Afinal de contas, estávamos apenas brincando! Resolvemos voltar para casa. Andávamos lado a lado. Então, num piscar de olhos, ele simplesmente desapareceu. Olhei em todas as direções e nada do tempo. Cheguei mesmo a chamar-lhe de ingrato por ter partido sem nenhuma palavra. Eis que quando cheguei em casa, ouvi uma voz. Era ele. Disse:

- Estamos, agora, ocupando o mesmo espaço, camaradinha! Por que você não aproveita, vai até a janela e dá uma olhada. Lá você verá o seu futuro.

Sai correndo, abri a janela e vi: uma nuvem, navegando no céu azul. 


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

NOITE GRAVE

A ira me possuía; então, por Heitor chamei
A casa estava vazia, o reino de um só rei
O coro desesperava a melodia da perdição
O caule intumescia todo o apelo da desrazão

Delirava pelo combate e pelo enterro mais antigo
A nostalgia se insinuava como o impossível, como o abrigo
Não a queria, mas o infinito que só se tem pela metade
Como lembrança do dia sóbrio enluarando a noite grave

A que demônio estava entregue numa cidade de faz de conta
Que de real a nada assiste, mas à loucura o dedo aponta?

Pelo gargalo sorvendo o vinho sangüíneo espesso fluxo tinto
De cena em cena dramatizava a realidade do quanto minto
O quanto minto saber mentir só pra viver de fato a vida
Dispersa e bela e tola e fútil e tudo e nada logo em seguida
Ouço a canção que já me escapa e faz de mim acorde estranho
Três notas soam a dissonância do vil conjunto do qual apanho

Penso na virgem sob os escombros tragando o deus na própria goela
Penso naquele que traz a rocha no ombro e a quem a queda espera
Penso no arqueiro solar Apolo, também no cego já de nascença
Que a si cegou-se mais uma vez só pra sentir de si a presença
Penso no jovem de pé ferido abandonado na ilha antiga
Penso no Hércules sósia de Ulisses que ama a vida como inimiga

Como conter tanto tormento d'uma existência tão pequenina?
Como amar tão largo amor que tudo quer e nada ensina?
Carnificina das mil palavras todas lavradas em alma errante
Promíscuos símbolos de uma geada desfeita pelo sol de antes

Ah, meu amor! Ah, meu amor! Ah, minha amante amada amante!
Por que possuis a tudo e faz de mim mortalha de um infante?
Ah, meu amor! Minha donzela, alma que é minha, o meu destino
De onde vem a força débil dessas tolices que tanto afirmo?
Por onde flui o curso hostil que rompe a margem onde me deito?
Que oceano trama o naufrágio e alarga o fio de água estreito?

Profunda sombra que a tudo sabe e a nada sabe dar razão
Pr'onde me leva entre os segundos que se acumulam em profusão?
Sou teu escravo ou teu vassalo, sou tua estirpe ou sou dejeto?
Sou teu sustento que apodrece, ou sou de ti o próprio tempo?
Ah, noite escura que se aninha numa garrafa, num coração
Faça de mim o que quiser, faça de mim não mais que vão!