sábado, 5 de abril de 2014

CANTO AGÔNICO


Prólogo

Quando foi que juntamente com tudo
Passei eu mesmo a ser esse
Que aparentemente sendo muito profundo
Se afogava num raso sem peixes?
E que apoiado nas tantas palavras
Penduradas qual penduricalhos
Ornamentos pesando a cascalhos
Sobre a fonte do mau entendimento
Comecei a erguer meu castelo
Ora em ruína, mas todo erguido
Por vapores de um ingente anelo
Que na frieza dos dias vividos
Enrijeciam-se feitos escravos
Que, todavia, trabalham contentes
Com o único intento de terem
A mim para sempre só deles?

Canto e espanto

Vejo o mundo ao entorno
Vejo a mim mesmo e contemplo
A origem de novos rebentos
Grãos de terra de um chão que não escolho
Leito d’um zelo em excesso
Mão que a tudo amaina
Não se vale do verso e o reverso
Absoluta é a sua escolha
E da gruta o mundo renasce
Sob a luz se alarga nas bordas
E como estória que alguém já contasse
Com dois olhos à vida acorda
Mas acorda também pensamento
Afastando-se um passo do abismo
Pouco pensa, é mais sentimento
Sensações que não sabem o cinismo

(Mas quando?, ainda pergunto,
Que o cinismo passou a ser eu
E o mundo, que por mim mais cresceu
Converteu-se em tão árido assunto?)

Um segundo e a concepção
Faz de mim um destino sem escolha
Faz a forma pr’aquele que olha
Faz o ato da revolução
Tão primeira e tão necessária
À tragédia de tudo o que existe
Sou um filho que o mundo assiste
Sou quem expande pra muito sua área
Minhas pernas de terra são feitas
Passo a passo a terra não acaba
O caminho de certo e estreito
Em descampado imenso se alarga
Mas aos passos, não há quem os explique
Só do mundo a escrit’inacabada
Que se abre a quem se verifique
Amante andarilho cantor de palavras
Mas também a matéria pensante
Na poeira da terra germina
Entre o abismo e o pasto se firma
E ao mundo traceja o semblante

Origem e tragédia

Parece-me inescapável
De início o primeiro fantasma
A pergunta que a muitos engasga
Uma origem que seja explicável
Para isso a palavra é preciso
Ferramenta exclusiva dos homens
Criadoras que erguem abrigos
E o entendimento consomem
Rejeitadas pela natureza
Que de inícios sempre as dispensava
Viu nascer de soslaio sua presa
E já ela num instante chorava
Pois o ser que primeiro nasceu
Era causa e também conseqüência
Engolfado em si mesmo torceu-se
Dando à forma primeira existência
Junto à forma nascia o som
Junto ao som rebentou a palavra
E do mundo quebrou-se o encanto
Que o silêncio há tanto gestava
Pois o pranto não era à toa
O fazia toda a natureza
Que não tarde fez-se a nova presa
Do infante de audível coroa
Eis o ser e eis toda sua força
A palavra, pilar da sua História
Dominado aquele que a ouça
Se a proclama, senhor da sua glória

Então tudo, em seu torvelinho
De solavancos a tudo inverteu
E se o vento fazia o moinho
Sozinho e sem vento o moinho moeu
E o mundo que era ele mesmo
Os limites que a vida expandia
Enganado, sem rumo e a esmo
Se quedava esquivo e ouvia
A palavra de um pensamento
Que crescia em torno a si mesma
Dando asas aos vermes, às lesmas
Que não viam na terra o contento
Eis, então, que todo pensamento
De reinante ao abismo voltou
No vazio cultivou o tormento
E no peito do homem o instalou
Eis o mundo e o homem distantes
Eis o homem refém da idéia
Eis o todo em nada sobrante
Como sombras correndo nas veias
E a vida converte-se em sonho
E o castelo mantém-se altivo
Pois a sombra oculta o dano
São os olhos mais cegos que o ouvido

Andarilho errante

Caminho por ruas noturnas
Caminho por ruas sem cores
Mas se o dia traz o colorido
Traz ao homem o fim das’uas dores
Não concedo verdade ao tormento
Que cultive um homem em vão
No avesso interno do peito
Desprezando a astúcia das mãos
Quem caminha conhece o mundo
E pra trás deixa o próprio jardim
Que no início é maior do que tudo
Se explorado quase não tem fim
Todavia, é depois da cancela
Que se guarda a extensão de uma vida
Mas fechando-a é vã toda espera
Que esperando não encontra a partida
Pois partido se torna o homem
Que transborda por sua cisão
Flores mortas que suas mãos colhem
E não cessam de brotar do chão

Demônio Apolo

Me parece em voga a moda
Que cultiva qual ignorante
Que assim sendo é muito falante
E tantas voltas dá à simples corda
Eis que as voltas em forma de forca
Lhes investe de volta o argumento
Sem nem mesmo que se faça força
Agoniza-lhe o próprio instrumento
Tão altivo se me aproxima
Repartindo o caminho das pedras
Sobre mim seu juízo se inclina
Tolo ser que a si mesmo se enreda
Pois bem saiba que as flores que colho
Não são mortas, mas vivas urtigas
E se ao peso do mundo me encolho
Tens minha ira em contrapartida

Epílogo

Demônio moderno da luz
Andarilho sem eira nem beira
É a guerra o que a ambos seduz?
É o medo que a um deles tempera?
Contendores da vida agônica
Harmonia e feliz dissonância
É vizinha a lacuna astronômica
São guerreiros o canto e a dança
Num planeta distante nascemos
Mas o erro é a morada da vida
Somos jovens se um dia crescemos
Terra e céu, corpo e ment’ eis a lida  

Andarilho errante

Ó terceiro, fiel conciliador
É dialético o som do teu canto
Teu silêncio, porém, um horror
Subtrai a ação do seu tanto
Concilia na voz guerra crua
Nada disse que eu já não sabia
Mas tua voz é também o motor
Que as destroça, as hierarquias?
Tua voz menos vale que o gesto
Se ressoa senão para ti
Quem te pôs o tirano cabresto?
O demônio Apolo sorri

Demônio Apolo

Bem nascidos, sem fim tagarelam
A palavra é o triunfo do ser
Mui distante os gregos acenam
É a idéia seu prevalecer
Se a querem negar como fazem
Se a querem enfim destruir
Fortalecem a idéia que trazem
Destruição destruidora de si
Essa rede de tempo tecida
Pescador, mestre e aprendiz
É arpão, é anzol, presa e isca
Do que é dito e do que não se diz
Dialética, mais bela piada
Negação, euforia e ardor
Silogismo, minha lança afiada
É o único possível vetor

Andarilho errante

Ora, Apolo, tua arte conheço
Sempre preso ao teu falso vetor
Artifício que já de começo
Te acusa uma ausência e uma dor
Não que sintas, bem sei tanto e quanto
És covarde à todo o sentir
Por que pensas o mundo ser manco?
Pra amainar o teu medo de ti?
Se o grego distante se encontra
Sua luz é razão da sofística
Cujo dedo desmonta e remonta
Pretensões tolas e metafísicas

Mais um epílogo

A criança e o quebra-cabeça
O adulto e a doutrina moral
O futuro é o homem e a besta
E o amor e a luta agonal