sexta-feira, 27 de julho de 2012

MISTO QUENTE V

Fui até o banheiro, fiz um chumaço de papel higiênico e tentei estancar o sangramento. Tirei o papel das minhas costas e dei uma olhada. Estava empapado. Peguei mais papel e segurei ali por algum tempo. Então peguei o iodo. Passava o remédio nas costas, tentando alcançar o local do machucado. Era difícil. Finalmente consegui. De qualquer modo, quem já ouviu falar de costas infeccionadas? Ou o cara vive ou o cara morre. As costas eram uma coisa que os idiotas nunca pensavam em amputar.

Caminhei de volta para o quarto e me deitei na cama, puxando a coberta até o pescoço. Fiquei olhando para o teto enquanto falava com meus botões.

Tudo bem, Deus, digamos que Você esteja mesmo aí. Foi você que me colocou nesta. Você queria me testar. E que tal se eu O testasse? E que tal se eu dissesse que você não está aí? Você já me expôs ao teste supremo me dando esses pais e estas espinhas. Acho que passei no Seu teste. Sou mais durão do que Você. Se Você tivesse coragem de descer aqui, agora, eu cuspiria na Sua cara, se é que Você tem cara. E Você caga? O padre nunca respondeu a essa questão. Ele nos disse para não duvidarmos. Duvidar do quê? Acho que você já passou dos limites comigo, por isso, desafio-O a descer até aqui para que eu possa aplicar meu teste em Você!

Esperei. Nada. Esperei por Deus. Esperei infinitamente. Acho que peguei no sono.

Nunca dormia de costas. Mas quando acordei estava nessa posição e fiquei surpreso. Minhas pernas estavam dobradas e meus joelhos erguidos, dando às cobertas um aspecto de montanha. E quando olhei para essa montanha de cobertor, vi dois olhos me encarando. Eram olhos sombrios, negros, vazios... olhando para mim, encobertos por um capuz, um capuz negro e pontudo, como os usados pela Ku-Klux-Klan. Miravam-me fixamente, aqueles olhos negros e vazios, e não havia nada que eu pudesse fazer. Eu estava realmente apavorado. É Deus, pensei, mas Deus não podia ter aquela aparência.

Eu não podia parar de olhar. Não conseguia me mover. Aquilo simplesmente ficou me olhando a partir do monte que meus joelhos formavam no cobertor. Eu queria sair dali. Queria que aquilo desaparecesse. Seu aspecto era ameaçador e sombrio e eu podia sentir a sua força.

Pareceu ficar ali parado durante horas, só me encarando.

Então, se foi...

Fiquei sentado pensando no que tinha acontecido.

Não conseguia acreditar que aquilo pudesse ser Deus. Vestido daquela maneira.

Devia ser um truque vagabundo. Havia sido uma ilusão, obviamente.

Fiquei pensando no assunto por uns dez ou quinze minutos, então me ergui e fui pegar a pequena caixa marrom que minha avó me dera muitos anos atrás. Dentro dela havia pequenos rolos de papel com citações da Bíblia. Cada pequeno rolo ficava dentre de um compartimento próprio. Era esperado que o sujeito fizesse uma pergunta e então puxasse um dos rolinhos que supostamente conteria a resposta desejada àquela questão. Eu já tinha tentado utilizar a caixinha anteriormente, e não me tinha sido de nenhuma utilidade. Agora, tentei novamente. Perguntei à caixa marrom:

- Qual o significado do que aconteceu? O que eram aqueles olhos?

Puxei um dos papeizinhos e o desenrolei. Era muito pequeno e difícil de manusear. Ao conseguir desenrolá-lo, li:

DEUS O ABANDONOU.

Enrolei o papelzinho e o pus de volta em seu compartimento na caixa marrom. Não podia acreditar naquilo. Voltei para cama e fiquei pensando. Era simples demais, cru demais. Não dava para acreditar. Pensei em me masturbar para voltar à realidade. Continuava sem poder acreditar. Fiquei de pé e comecei a desenrolar todos os papeizinhos da caixa marrom. Procurava por aquele que dizia DEUS O ABANDONOU. Desenrolei todos. Nenhum deles trazia aquela mensagem. Li um por um e nenhum dizia aquilo. Enrolei todos novamente e os coloquei em seus compartimentos dentro da pequena caixa marrom.

(Charles Bukowski)
     

quarta-feira, 25 de julho de 2012

MISTO QUENTE IV

Tive sorte no dia seguinte. Chamaram meu nome. Era um médico diferente. Tirei minha roupa. Ele voltou para mim uma luz quente e branca e me examinou. Eu estava sentado na beira da cama.

- Hummm, hmmmm – ele disse –, uh huh...

Fiquei sentado ali.

- Há quanto tempo você tem isso?
- Há dois anos. Vem piorando cada vez mais.
- Ah-hã.

Continuou examinando.

- Agora, deite-se com a barriga para baixo. Volto logo.

Alguns momentos passaram e subitamente a sala estava cheia de pessoas. Eram todos médicos. Pelo menos pareciam e falavam como médicos. De onde eles tinham vindo? Eu tinha pensado que quase não havia médicos no Hospital Geral do Condado de Los Angeles.

- Acne vulgaris. O pior caso que já vi em todos os meus anos de prática!
- Fantástico!
- Incrível!
- Olhem só o rosto!
- O pescoço!
- Acabei de examinar uma garota com acne vulgaris. Suas costas estavam cobertas. Ela chorava. Sabem o que me disse: “Como vou conseguir arranjar um homem? Minhas costas ficarão marcadas para sempre. Quero me matar!”. E agora veja só esse camarada! Se ela pudesse vê-lo, saberia que realmente não tem nada do que reclamar!

Seu puto imbecil, pensei, não percebe que posso ouvir o que você está dizendo? Como será que um homem chega a médico? Será que eles aceitam qualquer um?

- Ele está dormindo?
- Por quê?
- Parece bastante tranqüilo.
- Não, não acho que ele esteja dormindo. Você está dormindo, meu garoto?
- Sim.

Continuaram movendo a luz quente e branca sobre diversas partes do meu corpo.

- Vire-se.
- Olhem, há lesões dentro da boca!
- Bem, como vamos tratar isso?
- A agulha elétrica, acho...
- Sim, claro, a agulha elétrica.
- Sim, a agulha.

Estava decidido.

(...)

Voltou a me cravar a agulha. Então a retirou e cravou numa terceira espinha. Dois outros homens haviam entrado e estavam parados, assistindo a tudo. Provavelmente eram médicos. Mais uma agulhada.

- Nunca vi ninguém agüentar as agulhadas dessa maneira – disse um dos homens.
- Ele não demonstra nenhuma dor – disse o outro.
- Por que vocês não vão beliscar o rabo de alguma enfermeira, rapazes? – perguntei a eles.
- Escute, filho, você não pode falar com a gente dessa maneira!

A agulha me perfurou novamente. Não respondi.

(Charles Bukowisk)
                            

terça-feira, 24 de julho de 2012

MISTO QUENTE III

Um dia eu estava por ali parado, esperando como de costume, de mal com o pessoal, mas a fim de fazer as pazes com eles, quando Gene se aproximou de mim correndo:

- Ei, Henry, venha cá!
- O que é?
- VENHA DUMA VEZ!

Gene começou a correr e fui atrás dele. Seguimos até o quintal dos Gibson. Os Gibson tinham um muro alto de tijolo ao redor de todo o pátio dos fundos.

- VEJA! ELE ESTÁ COM O GATO ENCURRALADO! ELE VAI MATÁ-LO!

Havia um gatinho branco com as costas voltadas para um dos cantos do muro. Não podia subir pelos tijolos nem fugir em qualquer outra direção. Suas costas estavam arqueadas e ele bufava, as garras prontas. Era, no entanto, pequeno demais para dar conta do buldogue de Chuck, Barney, que rosnava e se aproximava mais e mais. Tive a impressão de que aquele gato havia sido colocado ali pelos garotos e de que somente depois o buldogue fora levado até ali. Sentia isso intensamente pelo modo como Chuck e Eddie e Gene acompanhavam a cena: o aspecto deles os incriminava.

- Caras, vocês armaram essa – eu disse.
- Não – rebateu Chuck –, a culpa é do gato. Ele veio até aqui. Deixe que ele se vire agora para escapar.
- Odeio vocês, seus desgraçados – eu disse.
- Barney vai matar o gato – disse Gene.
- Barney vai fazer picadinho do gato – disse Eddie – Ele está com medo das unhas do gato, mas quando avançar tudo estará encerado.

Barney era um buldogue grande e marrom com as bochechas flácidas e cheias de baba. Ele era gordo e meio abobalhado e tinha olhos castanhos inexpressivos. Rosnava constantemente e ia avançando devagar, os pêlos do pescoço e das costas eriçados. Eu sentia vontade de dar um chute no seu rabo estúpido, mas percebi que ele me arrancaria a perna fora. O cão estava completamente tomado por um espírito assassino. O gato branco sequer tinha terminado de crescer. O bichinho soltava um silvo agudo e esperava, comprimido contra o muro, uma criatura belíssima, tão limpa.

O cachorro avançou lentamente. Por que esses caras precisavam disso? Não era uma questão de coragem, era apenas um jogo sujo. Onde estavam os adultos? Onde estavam as autoridades? Para me acusar de alguma coisa estavam sempre por perto. Onde tinham se enfiado agora?

Pensei em intervir na cena, apanhar o gato e sair correndo, mas eu não tinha forças. Tinha medo que o buldogue me atacasse. A consciência de que me faltava coragem para fazer o que era necessário fez com que me sentisse péssimo. Comecei a ficar enjoado. Estava fraco. Eu não queria que aquilo acontecesse, ainda que eu não conseguisse encontrar nenhuma maneira de evitar o massacre.

- Chuck – eu disse – deixe o gato ir, por favor. Chame o seu cachorro.

Chuck não respondeu. Continuou apenas observando. Então disse:

- Vai, Barney, pega ele! Pegue o gato!

Barney avançou e de súbito o gato deu um salto. O bichano se transformara numa furiosa mancha branca, toda silvos, garras e dentes. Barney recuou e o gato voltou novamente para o muro.

- Pegue ele, Barney – disse Chuck novamente.
- Cale a boca, maldito – disse a ele.
- Não fale comigo desse jeito – retrucou.

Barney começava a avançar novamente.

- Caras, vocês armaram tudo isso aqui – eu disse.

Ouvi um leve ruído atrás de nós e voltei a cabeça. Vi o velho sr. Gibson a nos observar de trás da janela do seu quarto. Ele também queria que o gato fosse morto, assim como os garotos. Por quê?

O velho sr. Gibson era nosso carteiro. Usava dentadura. Tinha uma esposa que passava o tempo inteiro em casa. Ela saia apenas para botar o lixo na rua. A sra. Gibson sempre usava uma rede sobre os cabelos e sempre trajava uma camisola, roupão de banho e chinelos.

Então apareceu a sra. Gibson, vestida como de costume, e se postou ao lado do marido, esperando pela carnificina. O sr. Gibson era um dos poucos homens da vizinhança que tinha um emprego, mas ainda assim ele precisava ver o gato ser morto. Gibson era como Chuck, Eddie e Gene.

Havia muitos deles.

O buldogue se aproximou. Eu não podia ver aquele crime. Senti uma vergonha profunda por abandonar o gato à própria sorte. Havia sempre a chance de que o bichano pudesse escapar, mas eu sabia que os garotos não deixariam isso acontecer. Aquele gato não enfrentava apenas o buldogue, ele enfrentava a Humanidade inteira.

Dei meia volta e me afastei, para fora do quintal, passando pela entrada do carro e chegando à calçada. Caminhei em direção ao local onde eu morava e lá, no pátio em frente à sua casa, meu pai estava plantado, me esperando.

- Onde você estava? – ele perguntou.

Não respondi.

- Já pra dentro – ele disse – E pare de parecer tão infeliz ou lhe darei algo para que você realmente sinta o que é infelicidade!

(Charle Bukowski)
           

segunda-feira, 23 de julho de 2012

MISTO QUENTE II

Entreguei meu ensaio na segunda-feira. Na terça, a sra. Fretag se dirigiu à classe:

– Li os ensaios de todos vocês sobre a visita de nosso ilustríssimo presidente a Los Angeles. Eu estava lá. Alguns de vocês, pelo que pude notar, não puderam comparecer ao evento por uma ou outra razão. Para aqueles entre vocês que não puderam estar lá, gostaria de ler o ensaio escrito por Henry Chinaski.

Um terrível silêncio se abateu sobre a turma. Eu era de longe o aluno mais impopular da classe. Era como se todos eles tivessem levado uma facada no coração.

– Este é um texto muito criativo – disse a sra. Fretag e começou a ler meu ensaio.

As palavras me soavam bem. Todos escutavam. Minhas palavras enchiam a sala, corriam de um lado a outro pelo quadro negro, ricocheteavam no teto e cobriam os sapatos da sra. Fretag, se amontoando no chão. Algumas das garotas mais lindas da classe começaram a me lançar olhares furtivos. Os caras durões estavam putos da cara. Seus ensaios não valiam merda nenhuma. Eu bebia de minhas próprias palavras como se fosse um homem sedento. Comecei, inclusive, a acreditar que elas representassem a verdade. Vi Juan sentado ali como se eu lhe tivesse esmurrado a cara. Estiquei as pernas e me recostei na cadeira. Logo, porém, estava tudo terminado. 

– Com essa grande redação – disse a sra. Fretag –, encerro a aula.

Todos se levantaram e começaram a guardar seus materiais.  

– Você não, Henry.

Sentei-me na cadeira, e a sra. Fretag ficou ali, me encarando. Então disse:

– Henry, você estava lá?

Tentei encontrar uma resposta. Nada me ocorreu. Eu disse:

– Não, eu não estava lá.

Ela sorriu.

– Isto faz com que seu ensaio seja ainda mais notável.
– Sim, madame...
– Você já pode ir, Henry.

Levantei-me e deixei a sala. Fui para casa. Então era isso que eles queriam: mentiras. Mentiras maravilhosas. Era disso que precisavam. As pessoas eram idiotas. Será fácil para mim. Olhei em volta. Juan e seu comparsa não estavam me seguindo. As coisas estavam melhorando.

(Charles Bukowski)
        

sexta-feira, 20 de julho de 2012

MISTO QUENTE I

No dia seguinte, durante a aula, passei o tempo todo com isso na cabeça. Olhava para as garotinhas e me imaginava fazendo com elas. Faria com todas elas e teríamos bebês, eu encheria o mundo com caras como eu, grandes jogadores de beisebol, marcadores de home runs. Nauqele dia, logo depois da aula terminar, a professora, sra. Westphal, disse:

– Henry, você poderia ficar mais um pouco?

A sineta tocou, e as outras crianças foram embora. Fiquei sentado e esperei. A sra. Westphal corrigia uns papéis. Pensei: talvez ela queira fazer comigo. Me imaginei erguendo o vestido dela e olhando para o seu buraco.

– Tudo bem, sra. Westphal, estou pronto.

Ela ergueu os olhos das folhas.

– Está certo, Henry. Em primeiro lugar, apague todos os quadros negros. Depois leve os apagadores até a rua e tire o pó deles.

Fiz o que mandou, então voltei a sentar na minha classe. A sra. Westphal continuava lá, corrigindo os papéis. Ela estava com um vestido azul apertado, grandes argolas douradas nas orelhas, tinha um nariz pequeno e usava óculos sem armação. Esperei e esperei. Então, eu disse:

– Sra. Westphal, por que a senhora me manteve aqui depois da aula?

Ergueu o rosto e me encarou. Seus olhos eram verdes e profundos.

– Mantive-o até mais tarde porque às vezes você é mau.
– Ah, é? – sorri.

A sra. Westphal me olhou. Tirou seus óculos e continuou me encarando. Suas pernas estavam ocultas pela mesa. Eu não podia ver seu vestido.

– Você estava muito desatento hoje, Henry.
– É?
– E não fale comigo desse jeito. Você está se dirigindo a uma dama!
– Oh, claro...
– Não seja insolente comigo!
– Como a senhora quiser.

Ela se levantou e saiu detrás da sua mesa. Caminhou por entre as classes e sentou-se sobre a mesa à minha frente. Tinha pernas maravilhosas, longas, cobertas por meias de seda. Sorriu para mim, esticou uma das mãos e tocou num dos meus pulsos.

– Seus pais não lhe dão muito amor, não é verdade?
– Não preciso desse tipo de coisa – respondi.
– Henry, todos precisam ser amados.
– Não preciso de nada.
– Pobre garoto.

Ficou de pé, veio até minha classe e tomou devagar minha cabeça entre suas mãos. Curvou-se e me estreitou contra os seios. Estiquei-me e enlacei suas pernas.

– Henry, você precisa parar de brigar com todo mundo! Queremos ajudá-lo.

Agarrei as pernas da sra. Westphal com mais força.

– Tudo bem – eu disse –, vamos trepar!
O que você disse?
– Eu disse vamos trepar!

Olhou-me por um longo tempo.

– Henry, nunca vou dizer para ninguém o que você me disse, nem para o diretor, nem para os seus pais, para ninguém. Mas eu nunca mais, nunca mais quero que você me diga isso outra vez, entende?
– Entendo.
– Tudo bem. Você pode ir para casa agora.

Levantei e caminhei em direção à porta. Quando a abri, a sra. Westphal disse:

– Boa tarde, Henry.
– Boa tarde, sra. Westphal.

Segui pela rua pensando no acontecido. Senti que ela estava a fim de trepar, mas tinha medo por eu ser jovem demais para ela, medo que meus pais e o diretor pudessem descobrir. Tinha sido excitante ficar sozinho com ela na sala vazia. Essa coisa de trepar era bacana. Dava às pessoas mais coisas em que pensar.

(Charles Bukowski)