sexta-feira, 17 de agosto de 2012

26/09/91, 12:16

Recebi as provas do novo livro hoje. Martin disse que vai dar umas 350 páginas. Acho que os poemas são bons. Assalto ao trem. Sou um velho trem a vapor, correndo para o hipódromo.

Levei umas duas horas para ler. Tenho certa prática nisso. As linhas rolam livremente e falam sobre o que quero que falem. Hoje, minha principal influência sou eu mesmo.

À medida que vivemos, caímos e somos destroçados por várias armadilhas. Ninguém escapa delas. Alguns até mesmo convivem com elas. A ideia é se dar conta que uma armadilha é uma armadilha. Se você está numa e não se dá conta, você está fodido. Acho que me dei conta da maioria das minhas armadilhas e escrevi sobre elas. É claro, nem tudo que escrevi foi sobre armadilhas. Existem outras coisas. Ainda assim, alguns dizem que a vida é uma armadilha. Escrever pode ser uma armadilha. Alguns escritores tendem a escrever o que agradou seus leitores no passado. Daí, estão fodidos. A criatividade da maioria dos escritores tem vida curta. Ouvem os elogios e acreditam neles. Há apenas um juiz final do que foi escrito, que é o escritor. Quando é influenciado pelos críticos, editores, leitores, está acabado. E, é claro, quando for influenciado por sua fama e sua fortuna, você pode mandá-lo flutuando rio abaixo junto com a merda.

Cada nova linha é um começo e não tem nada a ver com as linhas que a precederam. Todos começamos como novos, a cada vez. E, é claro, isto não tem nada de sagrado. O mundo pode viver muito mais facilmente sem livros do que sem encanamentos. E alguns lugares do mundo quase não tem nenhum dos dois. É claro, preferia viver sem encanamento, mas preciso dele pois estou doente.

Não há nada que impeça um homem de escrever, a não ser que ele impeça a si mesmo. Se um homem quer realmente escrever, ele o fará. A rejeição e o ridículo apenas lhe darão mais força. E quanto mais for reprimido, mais forte ele se torna, como uma massa de água forçando um dique. Não há perdas em escrever; faz seus dedos rirem enquanto você dorme; faz você andar como um tigre; ilumina seus olhos e coloca você frente a frente com a Morte. Você vai morrer como um lutador, será reverenciado no inferno. A sorte da palavra. Vá com ela, mande-a. Seja o Palhaço nas Trevas. É engraçado. É engraçado. Mais uma linha...

(Charles Bukowski, O capitão saiu para almoçar e os marinheiros tomaram conta do navio)
             

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

MISTO QUENTE VIII

Eram necessárias duas pessoas para jogar, e eu não ia jogar com o pervertido que era dono do lugar. Então avistei um garotinho mexicano, de oito ou nove anos. Ele veio caminhando pelo corredor. Ele veio caminhando pelo corredor. Um menino mexicano inteligente e de boa aparência.

- Ei, garoto?
- Sim, senhor?
- Quer jogar comigo?
- De graça?
- Claro. Estou pagando. Escolha seu lutador.

Ele deu a volta, olhando através do vidro. Parecia bastante compenetrado. Então ele disse:

- Está bem. Vou escolher o cara de calção vermelho. Ele parece melhor.
- Beleza.

O garoto foi para seu lado e olhou através do vidro. Olhava para seu lutador e então olhou para mim.

- Senhor, não sabe que tem uma guerra acontecendo?
- Sim.

Ficamos ali.

- O senhor precisa colocar uma moeda – disse o garoto.
- O que você está fazendo num lugar destes? – perguntei a ele. – Como você não está na escola?
- Hoje é domingo.

Coloquei a moeda de dez centavos. O garoto começou a mexer seus controles e eu os meus. O garoto tinha feito uma má escolha. O braço esquerdo do seu lutador estava quebrado e só subia até a metade. Jamais chegaria no botão do queixo do meu lutador. Tudo que o garoto tinha era uma mão direita. Decidi não me apressar. Meu cara usava calção azul. Movia-o em todas as direções, fazendo alguns ataques surpresa. O garoto mexicano era incrível, ele seguia tentando. Deixou de lado o braço esquerdo e apenas apertava o gatilho do braço direito. Lancei o calção azul num ataque mortal, apertando os dois gatilhos. O garoto continuava atacando com o braço direito do calção vermelho. Subitamente o calção azul caiu. Desabou com tudo, exibindo um ruído metálico.

- Peguei o senhor – disse o garoto.
- Você ganhou – eu disse.

O garoto ficou faceiro. Não tirava os olhos do calção azul ali estendido.

- Quer repetir a luta, senhor?

Fiquei calado, não sei por quê.

- Está sem dinheiro, senhor?
- Oh, não.
- Certo, então vamos lutar.

Coloquei outra moeda e o calção azul ficou de pé. O garoto começou a apertar seu gatilho e o braço do calção vermelho não parava de socar. Deixei o calção azul afastado por um momento, apenas contemplando. Então fiz um aceno com a cabeça para o garoto. Entrei em ação com o calção azul. Os dois braços socando com tudo. Senti que eu precisava ganhar. Senti que aquilo era muito importante. Não sabia por que era importante e fiquei pensando, por que acho que isso é tão importante?

Enquanto outra parte de mim respondia, é porque é.

Então o calção azul voltou a cair estatelado, emitindo o mesmo ruído metálico. Olhei para ele lá, caído de costas sobre o pequeno tablado de veludo verde.

Depois disso, dei meia volta e sai caminhando.

(Charles Bukowski)
                                                                              

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

MISTO QUENTE VII

Finalmente chegou o dia do Baile de Formatura. Foi realizado no ginásio feminino com música ao vivo, uma banda de verdade. Não sei bem por que, mas andei até lá naquela noite, os quatro quilômetros que separavam a escola da casa dos meus pais. Fiquei do lado de fora, no escuro, olhando para o baile, através das janelas gradeadas, completamente admirado. Todas as garotas pareciam extremamente crescidas, imponentes, adoráveis, trajando vestidos longos, e todas exalando beleza. Quase não as reconheci. E os garotos em seus smokings estavam muito bem, dançavam com perfeição, cada qual segurando uma garota pelos braços, seus rostos pressionados contra os cabelos delas. Todos dançavam com extrema graça, e a música vinha alta e límpida e boa, potente.

Então vislumbrei o reflexo do meu rosto a admirá-los – marcado por espinhas e cicatrizes, minha camisa surrada. Eu era como uma fera da selva atraída pela luz, olhando para dentro. Por que eu tinha vindo? Sentia-me mal. Mas continuava assistindo a tudo. A dança terminou. Houve uma pausa. Os casais trocavam palavras com facilidade. Era algo natural e civilizado. Onde eles haviam aprendido a conversar e a dançar? Eu não podia conversar ou dançar. Todo mundo sabia alguma coisa que eu desconhecia. As garotas eram tão lindas; os rapazes, tão elegantes. Eu ficaria aterrorizado só de olhar para uma daquelas garotas, o que dizer ficar sozinho em sua companhia. Mirá-la nos olhos ou dançar com ela estaria além das minhas forças.

E ainda assim eu tinha a consciência de que o que via não era tão simples e nem bonito como aparentava ser. Havia um preço a ser pago por aquilo tudo, uma falsidade generalizada na qual facilmente se poderia acreditar e que poderia ser o primeiro passo para um beco sem saída.

(Charles Bukowski)
        

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

MISTO QUENTE VI

No dia seguinte, deitado na cama, cansei de esperar pelos aviões e encontrei um enorme caderno amarelo que deveria ter sido usado para as atividades do ensino médio. Estava em branco. Encontrei uma caneta. Fui para a cama com o caderno e a caneta. Fiz alguns desenhos. Desenhei mulheres usando saltos altos, com as pernas cruzadas e as saias erguidas.

Então comecei a escrever. Era sobre um aviador alemão durante a Segunda Guerra Mundial. Barão Von Himmlen. Pilotava um Fokker vermelho. E não era popular entre seus colegas aviadores. Não falava com eles. Bebia sozinho e falava sozinho. Não ligava para mulheres embora todas o amassem. Ele estava acima desse tipo de coisa. Tinha outras ocupações. Estava ocupado em abater aviões aliados. Já havia derrubado 110, e a guerra ainda nem tinha terminado. Seu Fokker vermelho, que ele chamava de “Pássaro da morte de outubro”, era conhecido em todas as partes. Até mesmo os homens das tropas inimigas o conheciam porque freqüentemente ele passava em vôos rasantes sobre suas cabeças, enganando o fogo da artilharia e rindo, lançando-lhes garrafas de champanhe em pequenos pára-quedas. O Barão Von Himmlen nunca era atacado por menos de cinco aviões aliados de cada vez. Era um homem muito feio, o rosto coberto de cicatrizes, mas se você olhasse para ele por um bom tempo acabaria por descobrir sua beleza – ela estava nos olhos, no seu estilo, na sua furiosa solidão.

Escrevi páginas e mais páginas sobre os encarniçados combates aéreos do Barão: sobre como ele derrubava três ou quatro aviões e voava de volta, seu Fokker vermelho em frangalhos. Ele aterrissava, saltava do avião ainda em movimento e seguia para o bar, onde pegava logo uma garrafa e se sentava sozinho, mandando as doses goela abaixo. Ninguém bebia como o Barão. Os outros apenas ficavam no bar a observá-lo.

O Barão continuava abatendo avião atrás de avião. Ninguém parecia entendê-lo e ninguém sabia como ele se tornara tão habilidoso com o Fokker vermelho, sem falar em suas outras peculiaridades. O modo como lutava. Ou o jeito gracioso que tinha ao caminhar. E assim ele seguia. Às vezes não contava com a sorte ao seu lado.

O Barão seguiu fazendo coisas mágicas. Metade do caderno havia sido preenchida com o Barão Himmlen. Fazia-me bem escrever sobre ele. Um homem precisava de alguém. Não tinha ninguém por perto, assim você precisava inventar uma pessoa, criar um homem do modo como ele deveria ser. Isso não era faz-de-conta ou enganação. A outra alternativa sim é que era faz-de-conta e enganação: viver a sua vida sem um homem desses por perto.

(Charles Bukowisk)