domingo, 18 de março de 2012

SÁBADO, MEIO DIA

(...)
Voltei às minhas reflexões de ontem. Estava inteiramente frio: era-me indiferente que não houvesse aventuras. Simplesmente estava curioso em saber se não poderia haver.

Eis o que pensei: para que o mais banal dos acontecimentos se torne uma aventura, é preciso e basta que nos ponhamos a narrá-lo. É isso que ilude as pessoas: um homem é sempre um narrador de histórias, vive rodeado por suas histórias e pelas histórias dos outros, vê tudo o que lhe acontece através delas; e procura viver a sua vida como se a narrasse.

Mas é preciso escolher: viver ou narrar. Por exemplo, quando estava em Hamburgo, com aquela tal de Erna que tinha medo de mim e em quem eu não confiava, levava uma existência estravagante. Mas eu estava dentro dessa existência, não pensava nisso. E depois, numa noite, num café em San Pauli, Erna me deixou um momento para ir ao toalete. Fiquei sozinho, havia um gramofone tocando "Blue Sky". comecei a narrar para mim mesmo o que ocorrera depois do meu desembarque. Disse-me:

"Na terceira noite, ao entrar num dancing chamado Grotte Bleu, minha atenção foi despertado por uma mulher grandalhona, meio bêbada. E é essa mulher que estou aguardando nesse momento, a ouvir Blue Sky, e que vai voltar a se sentar à minha direita e me enlaçar o pescoço com seus braços." Senti então com violência que vivia uma aventura. Mas Erna retornou, se sentou ao meu lado, me enlaçou o pescoço com seus braços e detestei-a sem saber bem por quê. Agora compreendo: é porque era precisorecomeçar a viver e a impressão de aventura acabava de se dissipar.

Quando se vive, nada acontece. Os cenários mudam, as pessoas entram e saem, eis tudo. Nunca há começos. os dias se sucedem aos dias, sem rima nem razão: é uma soma monótona e interminável. De vez em quando se procede a um total parcial, dizendo: faz três anos que viajo, três anos que estou em Bouville. Também não há fim, nunca deixamos uma mulher, um amigo, uma cidade de uma só vez. E também tudo se parece: Xangai, Moscou, Argel, ao fim de 15 dias é tudo igual. Por alguns momentos - raramente - avaliamos a situação, percebemos que nos envolvemos com uma mulher, que nos metemos numa confusão. Por um átimo.

Depois disso o desfile recomeça, voltamos a fazer as contas das horas e dos dias. Segunda, terça, quarta. Abril, maio, junho. 1924, 1925, 1926.

Viver é isso. Mas quando se narra a vida, tudo muda; simplesmente é uma mudança que ninguém nota: a prova é que se fala de histórias verdadeiras. Como se fosse possível haver histórias verdadeiras; os acontecimentos ocorrem em um sentido e nós os narramos em sentido inverso. Parecemos começar do início: "Era uma bela noite de outono em 1922. Eu era escrevente de tabelião em Marommes." E na verdade foi pelo fim que começamos. Ele está ali, invisível e presente, é ele que confere a essas poucas palavras a pompa e o valor de um começo. "Estava passeando, saira do vilarejo sem perceber, pensava em meus problemas de dinheiro." Essas frases, tomadas pelo que simplesmente são, significam que o sujeito estava absorto, deprimido, a cem léguas de uma aventura, exatamente nesse tipo de estado de espírito em que se deixam passar os acontecimentos sem vê-los. mas o fim, que transforma tudo, já está presente. Para nós o sujeito já é o herói da história. Sua depressão, seus problemas de dinheiro são bem mais preciosos do que os nossos: doura-os a luz das paixões futuras.

E o relato prossegue às avessas: os instantes deixaram de se empilhar uns sobre os outros ao acaso, foram abocanhados pelo fim da história que os atrai, e cada um deles atrai por sua vez o instante que o precede: "Era noite, arua estava deserta." As frases são lançadas negligentemente, parecem supérfluas; mas não caimos no logro e a deixamos de lado: é uma informação cujo valor compreenderemos depois. e temos a impressão de que o herói viveu todos os detalhes dessa noite como anunciações, como promessas, ou até mesmo de que vivia somente aqueles que eram promessas, cego e surdo para tudo que não anunciava a aventura. esquecemos que o futuro ainda não estava ali; o sujeito passeava numa noite sem presságios, que lhe proporcionava de cambulhada suas riquezas monótonas, e ele não escolhia.

Quis que os momentos de minha vida tivessem uma sequência e uma ordem como os de uma vida que recordamos. o mesmo, ou quase, que tentar capturar o tempo.

(Jean-Paul Sartre, A Náusea)
        

PREFÁCIO DE PERGUNTE AO PÓ, POR CHARLES BUKOWSKI

Eu era um jovem, passando fome e bebendo e tentando ser um escritor, Fiz a maior parte das minhas leituras na Biblioteca Pública de Los Angeles, e nada do que eu li tinha a ver comigo ou com as ruas ou com as pessoas em minha volta. Parecia que todo mundo estava brincando de jogar com as palavras, que aqueles que não diziam quase nada eram considerados escritores excelentes. Seus escritos eram uma mistura de sutileza, artesanato e forma, e era lido e era ensinado e era ingerido e acabou. Era um esquema confortável, uma Cultura da Palavra, muito malandra e cheia de nove-horas.

Era preciso voltar aos escritores da Rússia pré-revolucionária para achar alguma ginga, alguma paixão. Havia exceções mas essas exceções eram tão poucas que a gente as lia logo, e lá estava você olhando para filas e filas de livros chatos pra caralho.

Com séculos para olhar para trás, com todas as suas vantagens, os modernos não davam pra saída.

Tirei livro após livro das estantes. Por que é que alguém não diz alguma coisa? Por que é que ninguém sai gritando?

Tentei outros livros na biblioteca. A seção sobre religião era um pé no saco. Fui pra filosofia. Encontrei alguns alemães amargurados que me animaram um tempo, mas não passou disso. Tentei matemática, mas matemática superior era igualzinho religião: não saquei bulhufas. O que EU precisava parecia não existir em lugar algum.

Tentei geologia e a achei curiosa mas, finalmente, insubstancial.

Achei alguns livros sobre cirurgia e gostei dos livros sobre cirurgia: as palavras eram novas e as ilustrações maravilhosas. Gostei particularmente e memorizei a operação no mesocólon.

Daí eu abandonei a cirurgia e voltei para a sala dos romancistas e contistas (Quando eu tinha bastante vinho barato pra beber eu nunca ia a biblioteca. Uma biblioteca era um bom lugar para ir quando você não tinha nada pra beber nem pra comer, e a dona da pensão estava atrás de você e do dinheiro do aluguel. Na biblioteca, pelo menos, você tinha uma privada que preste). Vi uma porção de vagabundos lá, a maior parte dormindo em cima dos livros.

Eu ficava andando pelo salão, tirando os livros das estantes, lendo umas linhas, algumas páginas, depois pondo de volta.
Então um dia peguei um livro, abri e lá estava. Parei por um momento, lendo. Então como alguém que achou ouro no lixo, levei o livro para uma mesa. As linhas rolavam fácil pela página, havia uma corrente. Cada linha tinha sua própria energia e era seguida por uma outra que nem ela. A própria substância de cada linha dava uma forma à página, a sensação de alguma coisa esculpida ali. E, aqui, afinal, estava um homem que não tinha medo da emoção. O humor e a dor estavam misturados numa esplêndida simplicidade. Começar aquele livro foi um selvagem e enorme milagre pra mim.

Eu tinha um cartão da biblioteca. Tirei o livro, levei-o para meu quarto, me joguei na cama e li, e eu sabia muito antes de terminar que aqui estava um homem que tinha desenvolvido um jeito diferente de escrever. O livro era Pergunte ao Pó; e o autor, John Fante.

Ele ia ser uma influência permanente sobre o meu modo de escrever.

Terminei Pergunte ao Pó e procurei outros livros de Fante na biblioteca.

Achei dois: Dago Red e Espere Até a Primavera, Bandini. Eram da mesma categoria, escritos com as tripas e com o coração.
Sim, Fante teve um puta efeito sobre mim. Logo depois de ter lido seus livros, comecei a viver com uma mulher. Ela bebia mais que eu e tivemos umas brigas brabas e então eu gritava para ela:

- Não me chame de filho da puta! Eu sou Bandini, Arturo Bandini!

Fante era meu deus e eu sabia que os deuses devem ser deixados em paz, não se bate na porta deles. Mesmo assim eu gostaria de saber onde ele tinha vivido em Angel’s Flight e imaginei que ele ainda podia estar vivendo lá. Quase todo dia eu passeava por lá e pensava: foi por essa janela que Camila passou? Essa é a porta do hotel? E essa a portaria? Nunca cheguei a saber.

39 anos depois, reli Pergunte ao Pó. Isto é, reli este ano e lá estava ele inteiro, como as outras obras de Fante, mas esta é a minha predileta porque foi minha primeira descoberta da mágica.

Há outros livros além de Dago Red e Espere Até a Primavera, Bandini. São Cheio de Vida e A Irmandade da Uva. E, atualmente,
Fante tem um romance em obras, uma obra romance em processo, uma obra em obras, Um Sonho de Bunker Hill.

Através de outras circunstâncias, finalmente encontrei o autor este ano. Tem muito mais coisa na história de John Fante. É a historia de uma sorte terrível, e um terrível destino, e de uma coragem rara e natural.

Algum dia vai ser contada mas eu sinto que ele não quer que eu a conte aqui. Mas quero dizer que o jeito de suas palavras e o jeito do seu jeito são ainda os mesmos: fortes e bons e quentes.

Chega. Agora esse livro é de você.