quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

NOITE GRAVE

A ira me possuía; então, por Heitor chamei
A casa estava vazia, o reino de um só rei
O coro desesperava a melodia da perdição
O caule intumescia todo o apelo da desrazão

Delirava pelo combate e pelo enterro mais antigo
A nostalgia se insinuava como o impossível, como o abrigo
Não a queria, mas o infinito que só se tem pela metade
Como lembrança do dia sóbrio enluarando a noite grave

A que demônio estava entregue numa cidade de faz de conta
Que de real a nada assiste, mas à loucura o dedo aponta?

Pelo gargalo sorvendo o vinho sangüíneo espesso fluxo tinto
De cena em cena dramatizava a realidade do quanto minto
O quanto minto saber mentir só pra viver de fato a vida
Dispersa e bela e tola e fútil e tudo e nada logo em seguida
Ouço a canção que já me escapa e faz de mim acorde estranho
Três notas soam a dissonância do vil conjunto do qual apanho

Penso na virgem sob os escombros tragando o deus na própria goela
Penso naquele que traz a rocha no ombro e a quem a queda espera
Penso no arqueiro solar Apolo, também no cego já de nascença
Que a si cegou-se mais uma vez só pra sentir de si a presença
Penso no jovem de pé ferido abandonado na ilha antiga
Penso no Hércules sósia de Ulisses que ama a vida como inimiga

Como conter tanto tormento d'uma existência tão pequenina?
Como amar tão largo amor que tudo quer e nada ensina?
Carnificina das mil palavras todas lavradas em alma errante
Promíscuos símbolos de uma geada desfeita pelo sol de antes

Ah, meu amor! Ah, meu amor! Ah, minha amante amada amante!
Por que possuis a tudo e faz de mim mortalha de um infante?
Ah, meu amor! Minha donzela, alma que é minha, o meu destino
De onde vem a força débil dessas tolices que tanto afirmo?
Por onde flui o curso hostil que rompe a margem onde me deito?
Que oceano trama o naufrágio e alarga o fio de água estreito?

Profunda sombra que a tudo sabe e a nada sabe dar razão
Pr'onde me leva entre os segundos que se acumulam em profusão?
Sou teu escravo ou teu vassalo, sou tua estirpe ou sou dejeto?
Sou teu sustento que apodrece, ou sou de ti o próprio tempo?
Ah, noite escura que se aninha numa garrafa, num coração
Faça de mim o que quiser, faça de mim não mais que vão!


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