segunda-feira, 1 de agosto de 2011

UM LERO COM NIETZSCHE


"We're on our way home, we're going home"


NIETZSCHE: Nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de nós mesmos somos desconhecidos – e não sem motivo. Nunca nos procuramos: como poderia acontecer que um dia nos encontrássemos?

ALGUÉM: Cara, li teu livro mas não sei se sou exatamente um homem do conhecimento...

NIETZSCHE: (com sorriso no canto da boca) É justamente disso que estou falando...

ALGUÉM: (ruborizado) Li, confesso, pra tentar descobrir um pouco mais sobre mim mesmo.

NIETZSCHE: (triunfante) Com razão alguém disse: “onde está teu tesouro, estará teu coração”. Nosso coração está onde estão as colméias do nosso conhecimento. Estamos sempre a caminho delas, sendo por natureza criaturas aladas e coletoras do mel do espírito, tendo no coração apenas um propósito – “levar algo para casa”.

ALGUÉM: Eu até tenho colhido muito dos antigos. Você não deixa de ser um deles. Na verdade, vocês são muito mais simples e honestos quando se trata de alçar vôo para extrair um quê do mel do auto-conhecimento. Só que essa busca leva muito tempo e o problema é que ela é solitária demais...(pausa). Mas não deixa de ser verdade que eu me sinto mais próximo de casa quando estou por aqui...

NIETZSCHE: Quanto ao mais da vida, as chamadas vivências, qual de nós pode levá-las a sério? Ou ter tempo para elas? Nas experiências presentes, receio, estamos sempre ausentes: nelas não temos nosso coração – para elas não temos ouvidos.

ALGUÉM: Andei pensando, cara... a comédia não é exatamente isso, quer dizer, apartar-se, mesmo que momentaneamente, do coração? Se for isso mesmo, então me parece que as vivências não são nada senão divertidas brincadeiras para serem jogadas mais com a astúcia do que com esse sério e universal coração. 

NIETZSCHE: (incisivo) Cada qual é o mais distante de si mesmo! (solene) Para nós mesmos somos homens do desconhecimento.

ALGUÉM: (conciliador, como quem se consagra ao próprio coração, todavia incluindo alguma astúcia) Oxalá os deuses me façam aprender a tanger mais de uma melodia nesse comboio de cordas que trago no peito. O tom menor para fazer da casa, lar; o tom maior para fazer do mundo, casa. Assim, quiçá, para onde quer que eu vá, eu sempre esteja indo para casa.... (subtamente iluminado) Caraca! De repente me lembrei do velho Odisseu. Valei-me velho astuto!

NIETZSCHE: (estrondosa gargalhada).

ALGUÉM: (em off) Do que ele ri eu não sei. Mas o bigode chega a estar arrepiado feito filhote de porco espinho. (gargalha, contagiado).

Inesperadamente Nietzsche crava a mão na própria testa e puxa-a, desprendendo-a e também a todo o seu rosto, revelando ser ele uma máscara. Por baixo, vemos o sorriso maroto de Erasmo de Rotterdan. Ele pisca um dos olhos.
             
ERASMO: Toque quantas melodias quiser. Mas uma de cada vez. (gargalhada)
 
ALGUÉM: Erasmo de Rotterdan?!
 
Erasmo crava a mão na cara, puxa-a, revelando-a uma máscara. Debaixo, o indefectível bigode de Nietzsche e seu semblante solene.
 
NIETZSCHE: (enfadado) Já disse, para nós somos homens do desconhecimento!
 
ALGUÉM: Pô, bicho, seja quem você quiser. Mas um de cada vez, né?    
 
Nietzsche estende a mão e agarra a cara de Alguém como se fosse uma máscara. Puxa-a, mas ela não se move. Recua.
 
NIETZSCHE: (balançando a cabeça em desaprovação) Tsc, tsc, tsc, tsc... 

           
Nietzsche pega um bloquinho e um lápis do bolso. Escreve algo. Arranca a página e entrega a Alguém.

 
NIETZSCHE: O dia em que usares máscaras e souberes quem és, não precisarás ler o bilhete.
 
Nietzsche vai embora. Alguém vê o bilhete. Nele não há nada escrito, mas apenas o desenho de uma máscara rindo e de outra chorando. 


(Inspirado no parágrafo 1 do Prólogo de A Genealogia da Moral) 

                                                                          

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