segunda-feira, 29 de agosto de 2011

II - A VISÃO DE HOMERO


Caminhando em direção ao trabalho, Patricio avistara um homem vestindo andrajos, que, por sua vez, avistara Patrício se aproximando. O estado mendicante do sujeito era o de uma figura repulsiva, daquelas tão comuns ao cenário cotidiano dos que transitam de um lado ao outro da cidade por motivos pessoais de sobrevivência ou apenas pelo motivo impessoal e compulsório de manutenção da circulação objetiva do sistema. O sujeito, de fato, pouca repulsa provocava, não obstante o mesmo não pudesse ser dito quanto ao grau da indiferença, essa sim, abundante e transbordando para fora do enquadramento da cena. Naturalmente, foi o sujeito que tomou a iniciativa da ação pois, caso contrário, a presente estória não seria sobre o encontro de Patrício Aragonéz com o seu próprio destino, tema esse, diga-se de passagem, tão banal quanto a banalidade de estar-se vivo em um mundo tão repleto de vivos quanto de mortos e de destinos e de encontros e desencontros entre mortos e vivos ou quase-vivos ou quase-mortos.

- O senhor tem um cigarro para dar a um cego?

Não estando àquela hora fumando, mas tendo apenas acabado de colocar um maço de cigarros recém comprado no bolso da calça, Patrício não esboçou qualquer iniciativa de tira-lo do bolso ou mesmo de dignar ao pedinte, que lhe solicitara o reconhecimento da própria presença, uma resposta, qualquer que fosse. Patrício seguiu caminhando como se o cego fosse ele próprio e como se tão própria fosse a sua cegueira que já há muito tivesse deixado de ser uma deficiência que o impedisse de desviar dos obstáculos impostos ao seu sonambulismo urbano dos dias úteis.

- Sei que o senhor tem cigarros.
- Se sabe, não é cego. Se não é cego é um vira-lata mentiroso – respondeu Patrício sem tomar fôlego, abruptamente arrancado do seu sono laboral.

Parados, um diante do outro, o sujeito surpreendeu Patrício dizendo-lhe sobre a cegueira a qual atribuiu a si mesmo. Era, de fato, sobre a incapacidade de distinguir-se dos tantos outros que lhe atravessavam o pedaço de calçamento sobre o qual se postava para exercitar sua atividade diária de sobrevivência, que se referia. Sobre a incapacidade de enxergar-se menos homem em seu metabolismo e em sua memória ancestral viva e em comunhão com a da sua espécie. Ou ainda, sobre a incapacidade de ver-se menos herdeiro de toda a história da humanidade e, no interior dela, das suas peripécias, marasmos, perfídias, motins, revoluções e golpes de sorte ou astúcia que fizeram o mundo, mundo, e fazem dos homens, diariamente, homens. Era, finalmente, mas não por último, disse como se recitasse um antigo poema, sobre a incapacidade de enxergar qualquer obstáculo que se propusesse a impedir que um sujeito desprovido de dinheiro fosse cruelmente privado de fumar o seu sagrado cigarro matinal, consagrado ao ritual venerável à condição humana de optar sobre a forma na qual aguardaria a chegada da própria morte, que se referia.

- Toma – disse Patrício, tirando do bolso o maço, abrindo-o e oferecendo-o ao sujeito.
- Eis aí um homem bom! – exclamou o sujeito enquanto pegava o cigarro. 
- Apropósito, qual o seu nome? – perguntou, Patrício, sem saber exatamente por quê?.

Era sorrindo que o sujeito, saboreando a nicotina em tragadas repletas de júbilo, comentava o fato de há muito não ser inquirido para que tivesse motivo em articular tal resposta. Dando mais atenção ao seu próprio ritual do que à pergunta, que serpenteava na atmosfera junto à fumaça cuja combustão ardia tanto quanto os olhos vermelhos do seu sacerdote, disse:

- Homero – afastando-se, assim, sem maiores satisfações. 

(continua...)
                 

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