domingo, 20 de dezembro de 2009

SUPERLATIVOS

Superlativo
À procura
De quem?
Não importa
Mas receba
Meu amor maior que o mundo

Superlativo
À procura
De quem?
Não importa
Mas transborde
Meu mundo maior que o amor

Superlativos
À procura
De pedaços
De partidos
De abraços
De vestígios
Que se fundem
Que se fodem
Que de amor desejam e morrem

E vivem

INFINITO

Infinito

Enfim mito o finito

E ínfimo minuto de granito
NEM TODAS AS RESPOSTA CABEM NUM ADULTO

(AA)

PRA CURAR

Procurar
E ser procurado

Pra curar
Secura do lado

De fora
De dentro
Silêncio

Teu nome
Meu grito
Extenso
Estou cego a todas as músicas,
Não ouvi mais o cantar da musa.
A dúvida cobriu a minha vida
Como o peito que me cobre a blusa.
Já a mim nenhuma cena soa
Nem o céu se me desabotoa.
A dúvida cobriu a minha vida
Como uma língua cobre de saliva
Cada dente que sai da gengiva.
A dúvida cobriu a minha vida
Como o sangue cobre a carne crua,
Como a pelo cobre a carne viva,
Como a roupa cobre a carne nua.
Estou cego a todas as músicas.
E se eu canto é como um som que sua.

(AA)

domingo, 6 de dezembro de 2009

A LUZ DELA NO MEU ESCURO

Estando a sós
Sem o charme dos canalhas
Atado aos nós
Do silêncio que se espalha
Ouço a vós
Que sorri e que gargalha
Feito mil sóis
E me esquentas e me olhas
Sob lençóis
Estendidos sobre as horas
Acima da voz
Que despede-se agora

sábado, 21 de novembro de 2009

CONVERSA AO PÉ DA CRUZ (2)

Já ia próximo o fim do martírio de Jesus, dependurado na cruz dos ladrões e desobedientes ao bem viver romano. Chega Bertold Brecht, fumando charuto e de boina. Aproxima-se da cruz. Ninguém o vê a não ser Cristo, que volve já quase sem forças a cabeça na sua direção. Diz Brecht:


- Homem, me diga uma coisa: de onde você tiraria toda a sua nobreza se eu lhe dissesse que por mais doloroso que seja o seu martírio, a morte de um homem não redimi a humanidade?

domingo, 15 de novembro de 2009

PARADOXO(3)

E a verdade se revela
Em se admitir o quanto
A altera quem proclama

E o realismo nos arvora
Na ciência dos ensaios
Exaustivos que o criam

E se forja a confiança
Com a confissão de tudo
Quanto falha se possui

PARADOXO (2)

E a verdade se revela
Em se admitir o quanto
A altera quem proclama?

E o realismo nos arvora
Na ciência dos ensaios
Exaustivos que o criam?

E se forja a confiança
Com a confissão de tudo
Quanto falha se possui?

GOTAS DE PIMENTA

Perdi o teu amor
Na treva do meu medo

Não mais café da manhã
Não mais  tardes de leitura
Rabugices
              Candura
                          Sossego

Há porém
Em cada meio dia e sempre
Curtidas gotas de pimenta
do teu amor ausente

sábado, 14 de novembro de 2009

CONVERSA AO PÉ DA CRUZ

Já ia próximo o fim do martírio de Jesus, dependurado na cruz dos ladrões e desobedientes ao bem viver romano. Chega Nelson Rodrigues, anacrônico e de cara inquiridora. Aproxima-se da cruz. Ninguém o vê a não ser Cristo, que volve já quase sem forças a cabeça na sua direção. Diz Nelson:


- Padre, me diga uma coisa: que espécie de pai cruel e desnaturado é esse que simplesmente sai espalhando por aí que seu próprio filho é um grandessíssimo FILHO DE MÃE VIRGEM?

A SIERGUÉI IESSIÉNIN

(...)
Que o tempo cuspa balas para trás,
E o vento no passado só desfaça
Um maço de cabelos.
Para o júbilo o planeta está imaturo.
É preciso arrancar alegria ao futuro.
Nesta vida morrer não é difícil.
O difícil é a vida e seu ofício.

(Maiakóvski)

domingo, 8 de novembro de 2009

360°

A última escolha
Me leva ao princípio
Estão todos mortos
Exceto a vida.

DIALÉTICA DA LAMA

O nome não foi jogado na lama
Porém, definitivamente,
Há lama no nome

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

AVESSO

Quis a volta o pensamento
Do que há muito é escombro
Feito dor que nega o tombo
E esgarça o sentimento

Quis depois fel e vingança
Pra provar do amor o avesso
E bradar na idéia a ânsia
De amar a qualquer preço

domingo, 25 de outubro de 2009

LEVE

À leveza, é o que se diz,
não se chega pelo orgulho
que remói de si o entulho
num altar de um só juiz

A leveza é da tragédia
provação do coração:
é sorrir mesmo sem rédeas
Respeitar dizendo não

sábado, 10 de outubro de 2009

SONETO INEVITÁVEL

Ante o vazio que nunca se evita
Ante o prazer que provoca sentidos
Não se antevê segurança de abrigos
Pouco se crê sofrimento que grita

Feito espiral que me redemoinha
Toda esperança ao fundo tragada
Vejo escorrer o que antes continha
Sem perceber nova esquina me aguarda

E a solidão, na soleira, na chuva
Não mais se ri nem tampouco acusa
Meu coração pelo crime de amar

Sem te saber me espreitas de perto
Oh, doce incerteza de amargo indiscreto
De mim faz tua presa sem mais nem pesar

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

ADUBO POÉTICO

Tem poesia que nasce do estrume
Do mundo que me circunda
Sobe e cai do mesmo cume

Tem poesia que ignora desafeto
Segue em frente, vira curva
Cumprimenta o que há de incerto

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

SÍNTESE

Vontade louca
De resolver
A existência
Em um só dia

Cadê você
Girando o mundo
Sem eu saber
Que eu não sabia?

NÁUFRAGO SEM MAR

Cedo era todo dia
O mar
A alegria
Movimento incessante
O peixe dentro d'água
Maré cheia
Vazante

Ressacas
Tormentas
Coração cheio de si
O medo
A morte
Respirar alívio
Sorrir

Palavras?
Poesia?
O que dizer?

Náufrago sem mar
Devo remar
Amanhecer

terça-feira, 29 de setembro de 2009

ÚLTIMA VIGÍLIA

A ti desejo
Enquanto dormes

Da sombra vejo
Sou o que morre

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

TIRANIA

O tirano veste sombra
Tece auto-elogios
Sobre a mesa pés descalços
Sobressaltos ninguém viu

O tirano dá risada
Junto dele quem não ri?
O palhaço chora a mágoa
O carrasco diz de si

O tirano pensa muito
Repetindo: que se dane!
Está correto, diz o sábio
Meu juízo, dor e pane

O tirano nega a pecha:
- Ouça o mundo e então conclua
   Por que achas mais suspeita
   Minha voz diante da sua?

O tirano silencia
Perto dele encosta a moça
Dá sorrisos, gesticula
Diz palavras que eu não ouça

O tirano é só um homem
Vive fora, vive dentro
Rói a base do seu trono
Ergue reinos ao relento

O tirano narra a história
Quer o outro só viver
Sobre si arroja o golpe
Já o azul, entardecer

ONTEM

Até hoje perplexo
ante o que murchou
e não eram pétalas

De como este banco
não reteve forma,
cor ou lembrança

Nem esta árvore
balança o galho
que balançava

Tudo foi breve
e definitivo.
Eis está gravado

não no ar, em mim,
que por minha vez
escrevo, dissipo

(Carlos Drummond de Andrade)

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

REDESPEDIDA

Devia ter ido há muito
Pouco resta menos claro
Amanhece ultimato
Rompe a linha o horizonte

Devia evitar a guerra
Me altera o tolo sonho
Te alveja o meu  sorriso
Restam corpos sem batalha

Redespeço-me agora
Sem atravessar a porta
Com silêncio sem aceno
Poesia me engole

domingo, 20 de setembro de 2009

ARMADILHA PARA PEGAR PAPALÉGUAS

A pluma
A bigorna
Desejos havidos
Em linhas tortas

sábado, 19 de setembro de 2009

PARADOXO

- Se você tentou falhar e conseguiu, você descobriu o que é paradoxo!

(Luis Fernando Veríssimo)

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

POUCO IMPORTA

Toda verdade
Meio mundo

Mundo inteiro
Verdadeira dúvida

Mas tudo
Pouco importa

Nem verdade
Mundo ou chuva

Se tua boca
Meia lua

Sob estrelas
Me encontra

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

OS DESLIMITES DAS PALAVRAS

Lugar sem comportamento é o coração
Ando em vias de ser compartilhado
Ajeito as nuvens no olho
A luz das horas me desproporciona
Sou qualquer coisa judiada de ventos
Meu fanal é um poente com andorinhas
Desenvolvo meu ser até encostar na pedra
Repousa uma garoa sobre a noite
Aceito no meu fado o escurecer
No fim da treva uma coruja entrava

(Manoel de Barros)

FALHA CARTESIANA
























Aprendi a usar
o campasso antes da régua
meu mundo gira
meus tropeços
linha reta




segunda-feira, 14 de setembro de 2009

UM FORASTEIRO PEDE CARONA



....um forasteiro chega a um lugar vindo de algum outro. Deseja apresentar-se ao mundo e que o mundo a ele se apresente. Colhe informações aqui e ali sem reparar no quanto elas dizem de si próprio. Tem de si muitas informações colhidas, muitas delas que em nada lhe dizem respeito. Seu passado nunca é totalmente revelado, muito menos o futuro condiz com tudo o que deseja. Conhece pessoas. Umas oferecem suas semelhanças. Outras segredam suas diferenças. Conhece o amor. Apresentam-no à tragédia como perda inevitável que não se admite. Apresentam-no à comédia como tragédia hilária quando sentida à distância. Aprende que resolver problemas é o mesmo que criar outros. É morto por assassinos e comete assassinatos. Descobre que as metáforas auxiliam a enfrentar a morte. Sempre pensa em voltar para o lugar da onde veio. Ao voltar, porém, descobre que dele tornou-se um forasteiro. Um forasteiro chega a um lugar vindo de algum outro....

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

MALEDICÊNCIA


Não se lembrava ao certo como a vida havia se convertido em algo tão caprichosamente difícil de entender. Não cansava de dizer a si mesmo, entretanto, que haveria de ser seu o capricho de não querer compreende-la. Ainda assim, não bastava. Mesmo que ele tivesse, de uma vez por todas, decidido encarar suas contradições e enganos de olhos abertos e que a forma com que essa decisão fosse levada a cabo incluísse a cruel astúcia de zombar de si próprio na busca de sentidos supostamente incrustados nos vãos de sua alma insolente, tal maledicência parecia pecar em excesso em nome da incapacidade de enxergar o sentido certeiro que lhe era subtraído. Errante se sentia diante de uma vida engajada em admitir em tom solene e peremptório sobre a distância entre os seus simples desígnios e a rasa atuação, ora soberba, ora inutilmente humilde, dele. Pensava que, talvez, tivesse nascido para viver como ditador tropical de qual ilha solitária banhada por um sol crepuscular. Mas, logo lembrava das estreitas fronteiras que demarcavam a cela para além da qual o mundo o observava em toda a sua natureza cativa e piedosamente ignóbil. Nunca vítima, contudo, era capaz de se enxergar, senão de si próprio, da sua falta de entendimento, da vileza com que se via na terra inóspita em que decidira, em tempos imemoriais, fincar a bandeira andrajosa da qual planejara, um dia, sentir orgulho. Não recordava o instante em que tal orgulho, tendo avançado por fileiras sinuosas, fez do zelo que lhe guiava o alimento para uma busca lenta e progressivamente amesquinhada diante da iminência de sucessivas perdas duramente assimiladas, ou mesmo, controversamente não admitidas. Sabia, porém, que de alguma forma o sugerido como inevitável, já um vício corroído pela certeza que devora a própria base, tinha que ser evitado mesmo que isso significasse precipitar a fatalidade legítima do imprevisível. Pois, se havia valor nas previsões que assistiram ao largo a passagem da realidade que se supunham antever, este valor não poderia ser senão o de uma derrota cabal não consentida e melancolicamente inútil. Inútil: era assim que, ao seu engenho, se apresentava o próprio esforço de sua mente em tracejar um arremedo qualquer de sentido que o fizesse recobrar a irmandade com a vida que agora parecia lhe escapar por entre os dedos. Percebeu, porém, enfim e ao cabo de uma garrafa de vinho, ao olhar fixamente as próprias cicatrizes, que sem dúvida havia espaço para muitas outras. Finalmente sorriu. Sutilmente. Um sorriso discreto feito cicatriz que nunca cicatriza. O circuito da dor se completou. Não restava outra coisa a fazer senão ir a procura de mais. Justamente aonde a dor se apresenta como promessa de amor e vida.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

REVOLUÇÃO, REVOLUCIONÁRIO


Imensa solidão
Avessa imensidão
Nem só, nem são
Solitário
Acrobata sem rede
Extra - ordinário
A dois palmos, o chão

E o deserto e a sede
Em meio à multidão
Literário
Vasto e triste
Charlatão de si mesmo
Alma em riste
Coração sem desejo
Falsário

Condenado de saída
Patíbulo ao encalço
Da comédia, a guarida
Da vida, cadafalso

Subversivo
Arbitrário
Nem solidão, nem solitário
Artesão
Inquebrantável operário
Poeta que inflige
à ordem, a desordem
Ao mundo
O contrário

Revolução
Revolucionário

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

VIGÍLIA INSENSATA

A cada noite ganhava a rua
Sob o luar recordava-a nua
Sempre pensando em não pensar
Se, meia-noite, o sol virá

Letreiros: nomes impossíveis
Partiam, os carros, sem aceno
Colisões, passos, sereno
Invernos tolos e incríveis

Cego de tanta euforia
Bebia a conta que se não paga
Em goles largos, sinestesia
O tempo estanque, reinventava

domingo, 30 de agosto de 2009

RESPOSTA AO CALENDÁRIO

Bebamos à insensatez
até que, enfim, encontremo-nos sóbrios

Furtemos ao calendário
a ordenação que nos marca os dias

Lembremos em voz alta
o dia acaba, a noite começa

Celebremos sem que nos ouçam
a lembrança esquecida ao poeta

Vejamo-nos adulterados
um pouco de mágoa, um pouco de alívio

Sigamos adulterando
a vil dádiva de estarmos vivos

SÓTÃO





No sótão de minha cabeça
Tem uma casa que fora sonhada
No topo d'uma longa escada
Espiral que me causa vertigem

Nela, dão-me a mão
Um herói que me diz ser eu mesmo
Uma sombra: insepulto desejo
E um clown cujas lágrimas tingem

Com borrão toda tinta da cara
Suscitando risadas e sustos
Impelindo-me a qualquer custo
Ao retorno eterno à origem

quarta-feira, 17 de junho de 2009

MEU PRIMEIRO ROTEIRO: MÁ COMPANHIA?

Eis o link para o meu primeiro ROTEIRO!

"MÁ COMPANHIA?"

STORYLINE:
Para conquistar homem desconhecido em palestra sobre "O pensamento vivo de Freud", mulher jovem precisa descobrir como lidar com as manifestações inconscientes do seu próprio desejo.

http://www.roteirodecinema.com.br/roteiros/ma_companhia.pdf

quarta-feira, 10 de junho de 2009

SOCIEDADE SOCIALISTA, ARTE ANARQUISTA


A idéia que o jovem Marx tinha do papel do escritor exige, em nossos dias, uma retomada vigorosa. É claro que essa idéia deve abranger também, no plano artístico e científico, as diversas categorias de produtores e pesquisadores:

"O escritor, diz ele, deve naturalmente ganhar dinheiro para poder viver e escrever, mas não deve em nenhum caso viver e escrever para ganhar dinheiro . . . O escritor não considera de forma alguma seus trabalhos como um meio. Eles são objetivos em si, são tão pouco um meio para si mesmo e para os outros que sacrifica, se necessário, sua própria existência à existência de seus trabalhos . . . A primeira condição da liberdade de imprensa consiste em não ser um ofício".

Mais que nunca é oportuno agora brandir essa declaração contra aqueles que pretendem sujeitar a atividade intelectual a fins exteriores a si mesma e, desprezando todas as determinações históricas que lhe são próprias, dirigir, em função de pretensas razões de Estado [ou de Mercado], os temas da arte. A livre escolha desses temas e a não-restrição absoluta no que se refere ao campo de sua exploração constituem para o artista um bem que ele tem o direito de reivindicar como inalienável. Em matéria de criação artística, importa essencialmente que a imaginação escape a qualquer coação, não se deixe sob nenhum pretexto impor qualquer figurino. Àqueles que nos pressionarem, hoje ou amanhã, para consentir que a arte seja submetida a uma disciplina que consideramos radicalmente incompatível com seus meios, opomos uma recusa inapelável e nossa vontade deliberada de nos apegarmos à fórmula: toda licença em arte.

Reconhecemos, é claro, ao Estado revolucionário o direito de defender-se contra a reação burguesa agressiva, mesmo quando se cobre com a bandeira da ciência ou da arte. Mas entre essas medidas impostas e temporárias de auto-defesa revolucionária e a pretensão de exercer um comando sobre a criação intelectual da sociedade, há um abismo. Se, para o desenvolvimento das forças produtivas materiais, cabe à revolução erigir um regime socialista de plano centralizado, para a criação intelectual ela deve, já desde o começo, estabelecer e assegurar um regime anar quista de liberdade individual. Nenhuma autoridade, nenhuma coação, nem o menor traço de comando! As diversas associações de cientistas e os grupos coletivos de artistas que trabalharão para resolver tarefas nunca antes tão grandiosas unicamente podem surgir e desenvolver um trabalho fecundo na base de uma livre amizade criadora, sem a menor coação externa.

Do que ficou dito decorre claramente que ao defender a liberdade de criação, não pretendemos absolutamente justificar o indiferentismo político e longe está de nosso pensamento querer ressuscitar uma arte dita"pura" que de ordinário serve aos objetivos mais do que impuros da reação. Não, nós temos um conceito muito elevado da função da arte para negar sua influência sobre o destino da sociedade. Consideramos que a tarefa suprema da arte em nossa época é participar consciente e ativamente da preparação da revolução. No entanto, o artista só pode servir à luta emancipadora quando está compenetrado subjetivamente de seu conteúdo social e individual, quando faz passar por seus nervos o sentido e o drama dessa luta e quando procura livremente dar uma encarnação artística a seu mundo interior.

(trechos de "Por uma arte revolucionária independente", de André Breton e Diego Riviera, escrito em 1938)

Nota: a retórica normativa é típica dos discursos permeados por debates ferrenhos nascidos de antagonismos profundos quanto aos rumos sociais do planeta. Será que hoje, apesar da "liberdade" que se diz socializada, os antagonismos são menos profundos?

segunda-feira, 8 de junho de 2009

ALGUMA TRADIÇÃO: GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ

Gabriel García Márquez: Sim, acredito: em geral, um escritor só escreve um único livro, embora esse livro apareça em muitos tomos, com títulos diversos. É o caso de Balzac, de Conrad, de Meleville, de Kafka e, naturalmente, de Faulkner.

Plinio Apuleyo Mendonza: Se não é o livro de Macondo, qual seria esse livro único seu?

GGM: O livro da solidão.
PAM: Se a solidão é o tema dominante de todos os seus livros, onde se deveria procurar a raiz desse sentimento dominante?

GGM: Acho que é um problema de todo mundo. Cada um tem as suas maneiras e os seus meios de expressar isso. Muitos escritores, alguns sem perceber, não fazem outra coisa senão expressar isso na sua obra. Entre eles eu.

PAM: Depois de O enterro do Diabo e antes de Cem anos de solidão (Ninguém escreve ao coronel, Veneno da madrugada e Os funerais da mamãe morta) seus romances e contos se tornaram de repente realistas, sóbrios, muito rigorosos na linguagem e na construção e sem nenhuma magia nem exagero. Como se explica essa mudança?

GGM: Quando escrevi O enterro do diabo já tinha a convicção de que todo bom romance devia ser uma transposição poética da realidade. Mas aquele livro, como você se lembra, apareceu num momento em que a Colômbia vivia uma época de perseguições políticas sangrentas e meus amigos militantes me criaram um terrível complexo de culpa. "É um romance que não denuncia, que não desmascara nada", disseram. Esse conceito vejo hoje como muito simplista e equivocado, mas naquele momento me levou a pensar que eu devia me ocupar da realidade imedata do país, afastando-me um pouco das minhas idéias literárias iniciais que por sorte acabei recuperando. Corri, entretanto, um sério risco de quebrar a cara. Estes foram livros inspirados na realidade da Colômbia e sua estrutura racionalista é determinada pela natureza do tema. Não me arrependo de tê-los escritos, mas constituem um tipo de literatura premeditada, que oferece uma visão um tanto estática e excludente da realidade. Por melhores ou piores que pareçam, são livros que acabam na última página.

PAM: O que fez você mudar de rumo?

GGM: A reflexão sobre o meu próprio trabalho. Uma longa reflexão, para compreender finalmente que o meu compromisso não era com a realidade política e social do meu país, mas sim com toda a realidade deste mundo e do outro, sem preterir nem menosprezar nenhum dos seus aspectos. (...) Como você sabe muito bem, nas minhas opções políticas pessoais sou um homem comprometido, politicamente comprometido. (...) Quero que o mundo seja socialista e acredito que mais cedo ou mais tarde será. Mas tenho muitas reservas contra ao que entre nós se deu em chamar literatura comprometida, ou mais exatamente romance social, que é o ponto culminante dessa literatura, porque me parece que a sua visão limitada do mundo e da vida não serviu, politicamente falando, de nada. Longe de apressar um processo de tomada de consciência, o retarda. (...) Muitos amigos militantes se sentem frequntemente obrigados a ditar normas aos escritores quanto ao que se deve ou não se deve escrever, assumem, talvez sem perceber, uma posição reacionária, na medida em que estão impondo restrições à liberdade de criação. Acho que um romance de amor é tão válido quanto qualquer outro. Na realidade, o dever de um escritor e o dever revolucionário, se quisermos, é o de escrever bem.

PAM: Quem foi o melhor leitor do livro Cem anos de solidão para você?

GGM: Uma amiga soviética encontrou uma senhora muito idosa copiando todo o livro à mão, coisa que naturalmente fez até o final. Minha amiga perguntou por que fazia isso e a senhora respondeu: "Porque quero saber quem na realidade está louco: se é o autor ou se sou eu, e acho que a única maneira de saber é tornando a escrever o livro."

PAM: Cem anos de solidão vendeu menos na França que na Inglaterra ou na Itália, para não falar nos países de fala espanhola, onde o sucesso foi obviamente extraordinário. A que atribui isso?

GGM: Talvez ao cartesianismo. Estou muito mais próximo das loucuras de Rabelais que dos rigores de Descartes. Na França foi Descartes quem se impôs.


(Transcrição feita com adaptações de trechos. "Cheiro de Goiaba")