Piora na medida em que me afasto – pensou Ed Kynon. Quanto pior, eis o declínio, eis a ponte sendo atravessada. Ponte essa existente apenas na medida de cada passo dado. A cada passo, tanto pior, tanto mais luz e calor e azul – berrou seu coração, sentindo-se degradado. Mas parar é ver o céu abaixo – retomou Ed seus pensamentos. Não por se estar elevado, mas por se estar de cabeça para baixo. Parado, o céu é o abismo terrível e indiferente. Voltar seria ir ter com a morte. Morramos! – urrou seu coração.
Ed saiu do grande Mausoléu. Lá ganhava a vida diariamente como coveiro. Desceu o indefectível jardim suspenso. Como sempre, desceu em sua própria companhia, feito uma árvore ambulante que carrega as próprias raízes. Robustas e longas. Habituadas a sugar a seiva de seu mítico Hades íntimo. Como sempre, Ed só queria voltar para casa. Mas quem retorna do Hades não pode olhar para trás, diziam os antigos.
No meio do caminho, entretanto, havia a travessia. Não da ponte, ainda. Mas da grande avenida. Grande o suficiente para abrigar 20 mil almas que juntas não eram uma. Um grande simulacro de rio é o que eram de fato. Mas Ed as amava. Todas elas e o seu rio e o seu doce simulacro – que não eram elas, realmente, mas o seu obstinado coração.
Ed parou. Da margem do grande rio das almas, observou o movimento continuo. Timidamente, começou a sonhar. Olhava e sorria discretamente. Considerava tal discrição o grande estratagema contra a truculência do amor. Mas a margem também é rio. Amá-lo de lá é o mesmo que mergulhar sem saber nadar. Ed, apaixonado, ousou se julgar seguro. Acreditando-se terno e ingênuo, era a mais maliciosa das criaturas vivas.
Ed desviou-se do seu rumo. Começou a caminhar pela margem, hipnotizado pelo reflexo do rio. O amor de Ed era aquele rio. Um rio de águas paradas. Um Absurdo. Nele se via vinte mil vezes. Via justamente a parte de si oculta quando diante do espelho. Como poderia, curioso, se cegar àquilo? – pensava enquanto olhava mais e mais. Olhando, Ed estava completamente cego.
As águas lançaram o seu canto. As cordas do coração de Ed vibraram. A melodia: sua intensa felicidade e mansa agonia. De dentro do rio outra espécie de corda fora lançada à margem. A corda do equilibrista. O rio o convidava a se equilibrar por sobre suas águas. Chegue mais perto – disse o rio. Nós também te amamos mais de perto. Mais perto. Mais perto. Ed, então, se equilibrou. Amigo do vento e do perigo, sobre um monociclo e rodopiando três massas, Ed se equilibrou. Ed era uma queda livre.
Almas por todos os lados. Era Penélope a quem procurava, no turbilhão. Todos eram Penélopes. Homens e mulheres. Vinte mil cisões fizeram Ed em pedaços. Mas Penélope não o reconhecia. O canto desafinava. A corda se rompia. O amor dava braçadas. Mais e mais Ed procurava. O rio não era a sua casa. Como poderia achar Penélope?! Ed era Penélope - à espera do retorno de Ed. Ed queria voltar. Mas voltar era ir ter com a morte, os antigos diziam. De cabeça para baixo, a cachoeira subia. Elevando-se, Ed caía.
Ed agarrou-se a uma pedra. Essa pedra era ele mesmo. Remando, Ed retornou à margem. Triste por ter falhado. Penélope, contudo, celebrava a sua vida. Cambaleante e recuperando-se, Ed ignorava ter quase morrido. Uma morte inacabada. Semelhante à vida inacabada. Algo ocorrera – pensou por um instante. Mas agora ainda é agora, então Ed caminha. Toma o rumo de casa. Mas a casa era todas direções.
Piora na medida em que me afasto – pensou Ed Kynon. Quanto pior, eis o declínio, eis a ponte sendo atravessada. Ponte essa existente apenas na medida de cada passo dado. A cada passo, tanto pior, tanto mais luz e calor e azul – berrou seu coração, sentindo-se degradado. Ed, porém, não deu ouvidos. Lembrou-se da ponte sempre inacabada. Ela o levava a sua casa inacabada. Ed provou o sangue dos seus joelhos ralados. O sangue tinha gosto de tinta. Seu corpo, o papel. Enfim, Ed soube o que fazer.
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