sábado, 30 de junho de 2012

LUA GREGA


Apolo: O sol nunca se põe. Essa é a verdade.
Dionísio: Mas também nunca ilumina os dois lados da Terra de uma só vez.
Apolo: Dois lados?
Dionísio: Sim!
Apolo: Já está bêbado a esta hora, jovem deus?
Dionísio: Sempre, meu caro e orgulhoso Apolo. Você sabe muito bem que o vinho é o meu sangue.
Apolo: Sei. Mas, então, me diga: sendo redonda, como poderia a Terra possuir dois lados?
Dionísio: Ah, ah, ah! Você sabe muito bem ser um belo de um sofista quando quer! Andou provando do meu vinho, foi?
Apolo: Ora, Dionísio, me respeite! Como poderia eu, bêbado, seguir na tarefa de iluminar e ordenar o mundo?
Dionísio: Que desse jeito tal tarefa seria muito mais divertida, ah, isso seria!
Apolo: Basta, Dionísio! – Oh, Zeus, dai-me paciência com este teu fruto semeado no leito da infortunada Sêmele – Não me agrada ser chamado de sofista, jovem insolente! Ao invés de me ofender, responda a pergunta que te fiz: como pode a Terra ter dois lados sendo ela redonda?
Dionísio: Apolo, guarde a tua ironia dialética para os filhos de Platão, o ardente amante do cadáver de Sócrates. Vocês, juntos, como bem sabe, hão de ordenar todo o mundo... de pernas pro ar! Ah, ah, ah, ah! Mas vocês sabem, também, que não me terão como aliado!
Apolo: Você vai responder o que te perguntei, ou vai ficar bancando a criança e me fará a desfeita de me deixar sem resposta?
Dionísio: Ora, Apolo, você sabe muito bem que é por sua causa que a Terra, redonda e azul, tem dois lados. O claro e o escuro. A luz e a escuridão. O dia e a noite. A vergonha e a nudez. A cultura e a natureza. A razão e o instinto. A ordem e a desordem... Quer que eu continue?
Apolo: Ainda assim, o sol nunca se põe. Insisto!
Dionísio: Sei que você não tem escolha, prezado irmão. Mesmo assim, considero você ainda mais belo quando, à noite, não passa de uma sutil lembrança refletida pela lua. Pois mesmo ela, que ilumina e cresce por amor a você, também morre e rejuvenesce por amor a mim: eis a lua nova!
Apolo: Não me fale dessa ingrata! Reflete minha luz dizendo me amar, mas sempre me abandona para depois voltar, como se nada tivesse acontecido.
Dionísio: Pois é justamente quando te abandona que ela mais me ama. Mas ao contrário de você, não me sinto abandonado quando, cheia e redonda, ela tanto te ama e presta homenagens. Eis o meu único mandamento: o eterno retorno.
Apolo: Ora, se ela tanto me ama, porque me abandona?
Dionísio: Apolo, mesmo a lua se cansa de refletir.
Apolo: (após instantes de silêncio pensativo) Será que sobrou um pouco do teu vinho para me oferecer?
Dionísio: Ah, ah, ah, ah! É claro, meu irmão! Dancemos! Evoé!!
Coro: EVOÉ!!!
   


sexta-feira, 29 de junho de 2012

O CALCANHAR DA HUMANIDADE

   Apolo, o deus arqueiro,
Lançou duas flechas pelos ares.
     Uma, na direção do sonho,
A outra, da realidade.
     Velozes, zuniram melodias
E distanciaram-se do divino arco.
    
     Da primeira, feita de sonho,
Seu alvo era o velho Zenão.
     Avançou, ligeira e implacável,
Atravessou infinitas imagens,
     Transpôs os mais largos hiatos,
E ao destino, até hoje, não chegou.
    
     A outra, feita de realidade,
Percorreu lentos séculos de vida.
     Aproximou-se da voz mais antiga
E cravou no calcanhar da humanidade.
     O pé, ferido e inchado,
Transpôs o mais curto dos hiatos. 
        

quarta-feira, 27 de junho de 2012

A PONTE

Piora na medida em que me afasto – pensou Ed Kynon. Quanto pior, eis o declínio, eis a ponte sendo atravessada. Ponte essa existente apenas na medida de cada passo dado. A cada passo, tanto pior, tanto mais luz e calor e azul – berrou seu coração, sentindo-se degradado.  Mas parar é ver o céu abaixo – retomou Ed seus pensamentos. Não por se estar elevado, mas por se estar de cabeça para baixo. Parado, o céu é o abismo terrível e indiferente. Voltar seria ir ter com a morte. Morramos! – urrou seu coração.

Ed saiu do grande Mausoléu. Lá ganhava a vida diariamente como coveiro. Desceu o indefectível jardim suspenso. Como sempre, desceu em sua própria companhia, feito uma árvore ambulante que carrega as próprias raízes. Robustas e longas. Habituadas a sugar a seiva de seu mítico Hades íntimo. Como sempre, Ed só queria voltar para casa. Mas quem retorna do Hades não pode olhar para trás, diziam os antigos.

No meio do caminho, entretanto, havia a travessia. Não da ponte, ainda. Mas da grande avenida. Grande o suficiente para abrigar 20 mil almas que juntas não eram uma. Um grande simulacro de rio é o que eram de fato. Mas Ed as amava. Todas elas e o seu rio e o seu doce simulacro – que não eram elas, realmente, mas o seu obstinado coração.

Ed parou. Da margem do grande rio das almas, observou o movimento continuo. Timidamente, começou a sonhar. Olhava e sorria discretamente. Considerava tal discrição o grande estratagema contra a truculência do amor. Mas a margem também é rio. Amá-lo de lá é o mesmo que mergulhar sem saber nadar. Ed, apaixonado, ousou se julgar seguro. Acreditando-se terno e ingênuo, era a mais maliciosa das criaturas vivas.

Ed desviou-se do seu rumo. Começou a caminhar pela margem, hipnotizado pelo reflexo do rio. O amor de Ed era aquele rio. Um rio de águas paradas. Um Absurdo. Nele se via vinte mil vezes. Via justamente a parte de si oculta quando diante do espelho. Como poderia, curioso, se cegar àquilo? – pensava enquanto olhava mais e mais. Olhando, Ed estava completamente cego.

As águas lançaram o seu canto. As cordas do coração de Ed vibraram. A melodia: sua intensa felicidade e mansa agonia. De dentro do rio outra espécie de corda fora lançada à margem. A corda do equilibrista. O rio o convidava a se equilibrar por sobre suas águas. Chegue mais perto – disse o rio. Nós também te amamos mais de perto. Mais perto. Mais perto. Ed, então, se equilibrou. Amigo do vento e do perigo, sobre um monociclo e rodopiando três massas, Ed se equilibrou. Ed era uma queda livre.

Almas por todos os lados. Era Penélope a quem procurava, no turbilhão. Todos eram Penélopes. Homens e mulheres. Vinte mil cisões fizeram Ed em pedaços. Mas Penélope não o reconhecia. O canto desafinava. A corda se rompia. O amor dava braçadas. Mais e mais Ed procurava. O rio não era a sua casa. Como poderia achar Penélope?! Ed era Penélope - à espera do retorno de Ed. Ed queria voltar. Mas voltar era ir ter com a morte, os antigos diziam. De cabeça para baixo, a cachoeira subia. Elevando-se, Ed caía.

Ed agarrou-se a uma pedra. Essa pedra era ele mesmo. Remando, Ed retornou à margem. Triste por ter falhado. Penélope, contudo, celebrava a sua vida. Cambaleante e recuperando-se, Ed ignorava ter quase morrido. Uma morte inacabada. Semelhante à vida inacabada. Algo ocorrera – pensou por um instante. Mas agora ainda é agora, então Ed caminha. Toma o rumo de casa. Mas a casa era todas direções.

Piora na medida em que me afasto – pensou Ed Kynon. Quanto pior, eis o declínio, eis a ponte sendo atravessada. Ponte essa existente apenas na medida de cada passo dado. A cada passo, tanto pior, tanto mais luz e calor e azul – berrou seu coração, sentindo-se degradado. Ed, porém, não deu ouvidos. Lembrou-se da ponte sempre inacabada. Ela o levava a sua casa inacabada. Ed provou o sangue dos seus joelhos ralados. O sangue tinha gosto de tinta. Seu corpo, o papel. Enfim, Ed soube o que fazer.

domingo, 24 de junho de 2012

LEPTOSPIROSE

A febre do rato
roeu a roupa do rei.
Mas o rei está nu!
Não para você
Sábio demais,
Supérfluo demais,
Limpo demais,
Desnecessário demais,
Virtuoso demais para ser:
pau, peito, cu, boceta,
o desdentado que mastiga,
o trovador que excreta.

A febre do rato
rói o pudor de quem vê.
  

SER OU SER

         Lírico, vindo do Hades.
Dramático, após o almoço.
         Épico nas entrelinhas.

Assim diz Apolo
         enquanto, à noite,
uiva Dionísio.
  

DITIRAMBO À ZARATUSTRA


Enfim, encontro-te na solidão anil.
Anil de sonhos que brincam com verdades.

E como são verdadeiros!
E como brincam, zombeteiros!
Fazendo do poeta cego
Amante na luz e sombra.

Há cor, por certo, há.
De cor, o coração.
Mas também o anil de Posseidon.

Mais ao mar do que ao céu,
Meu canto soa como a vaga indiferente.
Viaja desertos em silêncio,
No raso, dobra-se sobre si mesmo,
Rebenta em branca espuma e êxtase
Para salgar o solo hostil
Com o mais intenso azul anil.

Enfim, encontro-te na solidão anil
Anil de sonhos, profundo anil.