quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

FORMAS NA ESCURIDÃO

Eram duas da madrugada.
Duas e quinze.
Despertei com o som do telefone, acho.
Deitado no sofá da sala escura,
eu acordado e a campainha do telefone soando
pareciam duas coisas realmente estranhas.

Então, tudo piorou,
ou melhorou.
Depende de qual lado do cérebro acordou primeiro.

Uma voz grave
de zelo e reprimenda,
assustadoramente assustada e dissimulada,
sofrendo e contendo o próprio sofrimento
e fazendo sofrer e conter e sofrer,
disse:

Está tudo bem com você?
Aonde você está?
Você está bem?
Responda!

A voz familiar me disse que, antes de me ligar, havia acabado de atender a um telefonema
e nele alguém com a minha voz
dizia estar passeando pelo cemitério
e que havia muitos mortos e mais mortos e mais mortos
e depois chorava e chorava e chorava.

Respondi, então, que estava em casa
(não tão são, talvez menos são do que salvo, talvez não)
dormindo no sofá da sala e completamente alheio
a estórias de horror.
O pesadelo era ter acordado.
Desliguei.

Mas, devo confessar,
a escuridão da sala me deixou uma suspeita de dúvida.
- Teria sido eu que liguei, enquanto fingia pra mim mesmo que dormia?
- Haveria, algum enigma que se recusa à luz do dia, manifestado sua mensagem infernal pelo serviço telefônico com tarifa reduzida?
- Seria uma mãe cobrando do seu filho que siga pelo caminho da luz que leva diretamente à prisão do seu útero empoeirado?
- Ou ainda, apenas um trote? Tão estúpido quanto as perguntas que suscita?

Enquanto curtia aquele medo e assombro sonâmbulos,
bem no ventre daquela escuridão sobrenatural,
o telefone tocou novamente.
Porra, será que é alguém com a minha voz dizendo que eu estou no cemitério cheio de mortos?
Atendi, tomado de medo e fascínio e alguma irritação de sobreaviso.

Era minha mãe, novamente.
Disse que a minha voz tinha acabado de ligar para ela, de novo,
desesperada e chorando no cemitério com medo dos mortos.
Bem, dessa vez ao menos, eu sabia que não havia sido eu.

Porra, mas se a voz parecia ser a minha,
quem garante que a voz que eu acreditei ser da minha mãe
a me ligar no meio da madrugada foi realmente emitida por ela?

Estranha mania essa que as criaturas noturnas têm
de redesenhar, ao próprio bel prazer,
suas formas na escuridão.

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NOITE MAIS NEGRA

Pronto: chegou a noite mais negra.
Porque em verdade existem várias gradações.
Tem um momento em que a noite é televisão,
barulho de talheres, jogo de cartas...

Tem uma hora em que a noite é abajur aceso.
Mas sempre seguindo a galope
na direção última
-  a que me encontro agora.

Converso com po espírito de meu pai.
Ele me dá conselhos, põe a mão na minha cabeça,
olha para mim com saudades e se vai.

Queria tanto lhe fazer outras perguntas...
Mas vem chegando a manhã.
e com ela, a poesia se vai.

(Rogério Skylab - "Debaixo das rodas de um automóvel")
  

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