sábado, 10 de setembro de 2011

III - A ETERNIDADE DA BUSCA


“Eis aí um homem bom”. Na manhã seguinte, enquanto se arrumava para ir trabalhar, eram essas as palavras que teimavam em não abandonar o barco da consciência naufragada de Patrício, que já há muito, indo a pique, parecia clamar por socorro desde aquele primeiro momento em que todos nos lançamos ao mar de nossas desventuras sem entender muito bem se é o porto que se move para trás, ou, ao contrário, se somos nós que avançamos em direção a um horizonte zombeteiro que parece igualmente se mover numa eterna brincadeira pueril de pegar.

Ele pensava sobre como havia esquecido da capacidade de se reconhecer digno diante das adversidades impostas àqueles condenados à aventura da vida, adversidades essas impressionantemente transpostas, no dia anterior, pelas palavras daquele sujeito que chamou a si mesmo de Homero e se decretou cego às aparências fundadas pela aparente naturalidade do jogo comercial das trocas simbólicas e materiais. “Eis aí um homem bom”, repetiu Patrício, em voz alta, mas dessa vez não para referir-se a si próprio, e sim a Homero, fosse ele quem fosse. Porque o fato era o de que, independente de quem fosse, ele simplesmente era. Era, intransitivamente, com tamanha força que havia espantado Patrício e o impelido a lembrar-se da sua própria força, onde quer que estivesse, e que mais exatamente, estava num lugar acessível apenas por ele: nele próprio.

Em posse de si mesmo, Patrício sentiu-se abandonando muito do que, então, jazia em si mesmo, mas que simplesmente não era. Percebeu que em toda a sua vida de navegante em noite de céu nublado, não quis nada além de tragicamente afastar as nuvens da abóbada celeste com o poder do sopro de seus próprios pulmões tubérculos, para que, enfim, pudesse se guiar pelas estrelas, ou mais precisamente, para que o campo gravitacional delas o guiasse, uma vez que nem mesmo lê-las ele sabia, ocupado que sempre esteve em sonhar em ser uma delas. Neste exato momento Patrício riu. Em silêncio. Sentiu a tragédia do que já não era se transformar numa ainda tímida, porém confiante, possibilidade de comédia posta, sem rancores, ao seu inteiro dispor. Riu novamente e sentiu a vontade de compartilhar esse riso com Homero, uma vez que o próprio Homero havia compartilhado com ele a sua força.       

Ao aproximar-se do local aonde ocorrera o encontro com seu destino homérico, Patrício colocou as mãos no bolso para sacar habilmente o maço de cigarros, ao mesmo tempo em que punha em prontidão sua atenção com o objetivo de avistar o sacerdote ávido por sua ritualística nicotina vespertina. Olhou ao redor e logo se avexou de sua própria esperança ao dar-se conta de que não havia nem sinal do sujeito e de que, muito diferente do próprio caso de Patrício, aquele sujeito assemelhava-se mais a um nômade temporão sem itinerário fixo, parido pelo abismo das diferenças sociais implacavelmente erguidas. Mesmo, porém, sob pena de atrasar-se, Patrício iniciou uma busca pelas redondezas. Atravessou ruas, dobrou esquinas, estacou diante de sinais vermelhos, vistoriou ruelas, consultou os bancos das praças e os monumentos que ninguém sabe a quem foram erguidos, senão aos próprios mendigos que deles fazem bom uso. Nada. Foi quando, enfim, Patrício compreendeu. Sorriu. Teria que buscar Homero até o fim de seus dias. 

(continua...)
         

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