sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

DECLARAÇÃO DE AMOR


LEMBRETE

Se procurar bem, você acaba encontrando
não a explicação (duvidosa) da vida,
mas a poesia (inexplicável) da vida.

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AMAR

Que pode uma criatura senão,
entre  criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesmo de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.


(ambos de Carlos Drummond de Andrade, Declaração de amor)
 

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

DIVINAS DISPUTAS

Penso que dias melhores virão
Ela diz: só o inferno é que é bom!
Fico em silêncio, mantenho a calma
Ela canta com os dois pés na lama
Planejo as coisas para tudo caber
Enche ela o copo, transborda ao beber
Leio os livros, sei o que digo
Passa o verão ela fora do abrigo
Cometo um erro, peço dez-culpas
Diz ser tolice divinas disputas
Sigo o exemplo, me faço exemplar
Mergulha ela fundo, não sabe nadar
Presto auxílio, recebo um prêmio
Ela se ri de qualquer meu conselho
Sonho c'o dia em que, enfim, terei paz
Ela me diz: morrer nunca é demais!
           

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

JANELAS ABERTAS N°2


Sim
Eu poderia abrir as portas que dão pra dentro
Percorrer correndo corredores em silêncio
Perder as paredes aparentes do edifício
Penetrar no labirinto
O labirinto de labirintos
Dentro do apartamento

Sim
Eu poderia procurar por dentro a casa
Cruzar uma por uma as sete portas, as sete moradas
Na sala receber o beijo frio em minha boca
Beijo de uma deusa morta
Deus morto, fêmea de língua gelada
Língua gelada como nada

Sim
Eu poderia em cada quarto rever a mobília
Em cada uma matar um membro da família
Até que a plenitude e a morte coincidissem um dia
O que aconteceria de qualquer jeito

Mas eu prefiro abrir as janelas pra que entrem
Todos os insetos

(Caetano Veloso)

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

JARDIM

E me perdi pelo mundo afora dentro do tanto pensar
Pensamento feito gente que incandesce e serena
Ao relento repetindo, lento, a leitura das estrelas
Via láctea com feitio de berro pelo leite derramado

Então o mundo se perdeu em mim sem que eu sequer ainda
Tivesse mesmo me achado em qualquer canto, encostado,
Feito machado de fio finado, desafinado de tão cego,
Feito cegonha que erra o destino por voar morcego

Pelo caminho aéreo coberto de traições vaticinadas
Acendi o lampião do saber no escuro que o silêncio encanta  
E ouvi um verso muito pequeno e leve, feito de chuva fina
Que umedece a sina da palha seca que cobre a luz dos olhos         

Me perguntei por onde o caminho leva, enfim, se não eleva?
E por resposta a relva revelou a erva e o verso medicinal
Na água quente do corpo que carrego e que, de mundo, rego
Plantado neste jardim de palavras terrenas e debalde