segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

NINGUÉM MORRE JAMAIS

- E Vicente? - perguntou ela com voz monótona, as duas mãos agora na perna dele.
- Morreu. No ataque à cidade de Celadas.
- Vicente é meu irmão. - Ela esticou o corpo e tirou as mãos da perna dele.
- Eu sei - disse Enrique, e continuou comendo.
- É meu único irmão.
- Pensei que você já soubesse.
- Não sabia, e ele é meu irmão.
- Sinto muito, Maria. Eu devia ter dito de outra maneira.
- Ele realmente morreu? Tem certeza? Não seria uma notícia sem confirmação?
- Olhe, Rogello, Basilio, Esteban, Felo e eu estamos vivos. Os outros morreram.
- Todos?
- Todos.
- Não me conformo.
- Não devemos ficar falando nisso. Morreram.
- Mas ele é meu irmão. Você não entendeu ainda? Meu irmão.
- Somos todos irmãos. Alguns morreram, outros estão vivos. Nos mandaram de volta para que sobrassem alguns. Do contrário não sobraria ninguém. Agora temos que trabalhar.
- Mas por que morreram todos?
- Estavamos numa divisão de ataque. Neste caso ou se morre ou se é ferido. Nós outros fomos feridos.

Ela não respondeu e ele acabou de comer.

Soprava um vento fresco nas árvores, e estava frio na varanda. Ele recolheu os pratos no cesto e limpou a boca com guardanapo. Limpou as mãos cuidadosamente e pôs o braço na cintura dela. Ela chorava.

- Não chore, Maria. O que aconteceu é passado. Precisamos pensar no que temos de fazer. Temos muito que fazer.

Ela continuou calada, o rosto iluminado pela luz da rua, olhando para frente.

- Precisamos nos vigiar contra romantismos. Este lugar aqui é um exemplo de romantismo. Precisamos parar com o terrorismo. Precisamos cuntinuar evitando cair novamente em aventureirismos revolucionários.

A moça continuava calada. Ele olhou aquele rosto em que tinha pensado durante os meses em que pôde pensar em alguma coisa que não fosse o seu trabalho.

- Você fala como um livro - ela disse. - Não como ser humano.
- Desculpe. São lições que aprendi. Coisas que sei que preciso fazer. Para mim é mais real do que tudo.
- Para mim só os mortos são reais - disse ela.
- Prestamos homenagens a eles. Mas eles não são importantes.
- Olhe você falando de novo como um livro - disse ela zangada. - Seu coração é um livro.
- Deculpe, Maria. Pensei que você entendesse.
- Só entendo os mortos.

Ele sabia que não era verdade porque ela não os viu mortos como ele os viu, na chuva no olival da Jarama, no calor das casas bombardeadas de Quijorna, e na neve em Teruel. Mas sabia que ela o culpava por estar vivo quando Vicente não estava mais; e de repente, na parte humana ínfima e incondicional que restara nele, e que ele não sabia que ainda guardava, sentiu-se profundamente ofendido.

- Tinha um passarinho - disse ela. - Um tordo poliglota na gaiola.
- Tinha. Eu soltei.
- Que pessoa mais caridosa! - disse ela em zombaria. - Os soldados são todos sentimentais?

Ele se sentiu ofendido pela segunda vez, ele que pensara ter um coração duro que nada podia ofender nunca mais, a não ser a dor. Sentou-se na cama e se inclinou para frente.

- Levante o meu suéter - disse ele.
- Eu não.

Ele levantou o suéter nas costas e se encurvou.

- Veja, Maria. Isto não é de livro.
- Não posso ver. Não quero ver.
- Ponha a mão embaixo nas minhas costas.

Ele sentiu os dedos dela tocando aquele ponto afundado onde podia caber uma bola de beisebol, a cicatriz horrenda do ferimento em que o cirurgião tinha enfiado a mão enluvada para limpar, ferimento que ia de um lado da cintura ao outro. Sentiu o toque dos dedos dela e se encolheu. No momento seguinte ela o abraçava e o beijava, os lábios como uma ilha no repentino mar branco de dor que surgiu, invadindo-o, como uma onda brilhante e insuportável. Os lábios ainda nos dele; depois a dor de repente cessando e ele sentado sozinho, molhado de suor, e Maria chorando e dizendo: - Oh, Enrique, me perdoe. Me perdoe, Enrique.

- Tudo bem. Nada a perdoar. Mas não foi parte de nenhum livro.
- Me beije, Enrique.
- Só se for com muito cuidado.

Na cama, no escuro, conduzindo-se com cuidado, os olhos fechados, os lábios dele e os dela em contato, a felicidade sem dor, a volta para casa de repente sem dor, a sensação de estar vivo voltando sem dor, o conforto de ser amado e ainda sem dor; era um vazio de amar, agora não mais vazio, e os dois jogos de lábios no escuro, encontrando-se felizes e com doçura, no escuro e no calor da casa, e sem dor, no escuro; de repente soa a sirene cortante, despertando toda a dor do mundo. Era a sirene real, não a do rádio. Não era uma sirene. Eram duas. Vinham cada uma de um lado da rua.

Ele virou a cabeça e depois se levantou. Achou que a volta para casa durara pouco.

- Vamos - disse ele - nós dois. Aqui não há nada para ser protegido. O material é imprestável. É melhor fugirmos.
- Quero ficar. Quero proteger você.

Ela pegou o Colt no coldre debaixo do braço dele, ele deu-lhe um tapa na cara. -Vamos. Não seja ingênua. Vamos!
 
Desceram a escada. Ele sentiu a moça bem atrás dele. Abriu a porta e saíram juntos. Ele trancou a porta. - Corre, Maria - disse. - Nesta direção passando pelo terreno. Já!

- Quero ir com você.

Ele deu-lhe outro tapa. - Corra, depois pule na vegetação e rasteje. Me desculpe, Maria. Vá. Eu vou pelo outro lado. Vá. Ora essa, vá!

No capim, a moça continuava deitada com as mãos cruzadas no alto da cabeça.   "Me ajude a agüentar isto", disse ela apenas para o capim, pois estava sozinha ali. E de repente, nominalmente, soluçando: "Me ajude, Vicente. Me ajude, felipe. Me ajude Chucho. Me ajude, Arturo. Me ajude agora, Enrique. Me ajude."

Enrique, me ajude, ela pensou. Tirou as mãos da cabeça e fechou-as de encontro ao corpo. Assim é melhor, pensou. Se eu correr atiram. Será mais simples.

Levantou-se lentamente e correu para o carro. O holofote pegou-a em cheio. Ela correu vendo só o feixe de luz, uma luz branca cegante. Achou que era a melhor maneira de sair daquilo.

Atrás dela gritavam, mas não houve tiro. Um homem lhe deu um violento safanão, e ela caiu. Ouviu-lhe a respiração quando ele a segurou.

- Não - disse ela. - Não. Não. - E gritou: - Me ajude, Vicente! Me ajude, Enrique!
- Já morreram. Não podem ajudar você. Não seja boba - disse alguém.
- Podem. e vão me ajudar. Os mortos vão me ajudar. Vão, sim. Os nossos mortos vão me ajudar.
- Então dê uma olhada em Enrique - disse o tenente. - Veja se ele está em condições de ajudar. Aí na traseira do carro.
- Ele está me ajudando - disse Maria - Não vê que ele está me ajudando? - Obrigada, Enrique. Muito obrigada!

Maria sentou-se e ficou imóvel apoiada no encosto do assento. Parecia senhora de uma estranha confiança. A mesma confiança que outra moça da mesma idade dela tinha sentido há pouco mais de quinhentos anos na praça de uma cidade chamada Ruão.

Maria não pensou nisso. Ninguém no carro pensou nisso. As duas moças, uma chamada Joana, a outra Maria, nada tinham em comum a não ser essa súbita e estranha confiança que as socorreu quando precisavam. mas todos os policiais que estavam no carro sentiam-se constrangidos de ver Maria sentada ereta com o rosto luzindo à luz elétrica.

O negro de chapéu palheta saiu da sombra da casa e fez sinal para o primeiro carro. Subiu para o assento da frente, assim ficando dois ao lado do motorista. Os quatro carros pegaram a estrada principal que levava a La Havana pela beira-mar.

Apertado no assento da frente o negro enfiou a mão debaixo da camisa e tocou com dedos a guia de contas azuis. Manteve-se calado, os dedos segurando as contas. Antes de conseguir o emprego de alcagüete da polícia de La Havana era estivador, e ia receber cinqüenta dólares pelo trabalho daquela noite. Cinqüenta dólares é muito dinheiro em La Havana, mas o negro não podia mais pensar no dinheiro. Virou a cabeça um pouquinho e devagar quando entraram na estrada iluminada, o Malecon; olhou para trás e viu o rosto da moça luzindo, altivo, a cabeça erguida.

O negro assustou-se e envolveu com os dedos a guia de contas azuis e apertou forte. Mas o medo não passou porque ele estava agora exposto a uma magia bem mais antiga.

(Ernest Hemingway, Contos - Volume 3. Conjunto de trechos adaptados)
           

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