domingo, 9 de outubro de 2011

ECOS DE UM DEBATE

Prólogo:

Lendo sobre teatro, cheguei ao Sistema Coringa do Boal. Nele, mais precisamente na peça “Arena conta Tiradentes”, existia a coexistência de formas distintas de atuação. O método de Stanilávski era usado para promover a aproximação do ator, que desempenharia o papel de Tiradentes, com o seu personagem. Apenas ele o interpretaria, lhe dando unidade e individualidade psicológica e buscando a empatia ilusionista com o público.
Já o método utilizado para que os outros atores narrassem os demais personagens era o do distanciamento brechtiniano. Dando um passo atrás, para não permitir que os personagens se sobrepusessem aos atores, eles narrariam mais do que interpretariam seus papéis, introduzindo assim, no espaço aberto, a possibilidade à reflexão racional, ladeada ao sentimento emocional naturalmente decorrente da empatia ilusionista de uma encenação. Para aumentar o espaço racional e, assim, diminuir a regência emocional da recepção do público, todos os personagens, com exceção de Tiradentes, seriam narrados por todos os atores, em rodízio, com exceção do intérprete do protagonista.
Esse “ecletismo” é descrito num livro, por Décio de Almeida Amaral, através da seguinte fala de Boal: “Brecht disse que um povo feliz não precisa de heróis. Estamos tristes, por isso precisamos de Tiradentes!”. Eram os idos de 1967.
Fui caminhar na praia. O Sistema Coringa de Boal, então, atuou como bem entendeu sobre minhas fantasias, lançando-me a léguas de séculos atrás, mais exatamente, num vale onírico aonde dois homens convivem, mesmo que nunca tenham, de fato, convivido. Heráclito e Parmênides.
Ecos de um debate:
Heráclito e Parmênides caminham lado a lado no mundo físico, um vale com seus ecos. Parmênides estaca. Heráclito continua se movendo. Progressivamente abre-se uma distância entre um e outro, mas o eco de suas vozes permite que conversem até que enfim, não se ouçam mais. Sem parar de andar nem voltar-se para trás, Heráclito diz:

H. Parou por quê? A vida é movimento neste vasto mundo físico!
P. Não parei. Caminho, agora, pelo vasto mundo metafísico.
H. Insisto que a vida é movimento. Nem a água do rio é a mesma quando nos banhamos pela segunda vez, muito menos nós somos os mesmos.
P. Via-o de lado, agora vejo-o de costas. É você ainda, Heráclito, meu velho?
H. Claro que não. Caminhava acompanhado. Agora caminho sozinho. A solidão não me agrada tanto quanto a boa companhia, mas certamente considero-a mais proveitosa do que a companhia de tolos. Julgava estar em boa companhia. Agora tenho dúvidas e as dúvidas me aborrecem. Como posso ser o mesmo?
P. Daqui, parado, penso: caminhávamos juntos e não nos distanciávamos um do outro. Não estaríamos nós em repouso e não seria esse movimento que tanto presa apenas aparência? E agora que parei e você caminha, finalmente tal movimento é constatável. Se sou tolo, é a tolice o que permite constatar o movimento, e não ele próprio.
H. Ora! Pergunte as suas pernas que o trouxeram até aí se o cansaço delas é aparente! De que serve essa tolice metafísica, senão para justificar o cansaço delas. Íamos de Éfeso para Eléia. Bem vejo que chegarei à sua cidade muito antes que você.
P. Chegará. Mas pra quê, sem o seu anfitrião. Não preciso me mover para saber que logo se perderá por lá. E não se engane, Heráclito – se é que ainda é esse o seu nome. Será um Heráclito perdido, mas ainda será um Heráclito.
H. Lá chegando, então, eu mando os médicos virem lhe buscar. Direi a verdade a eles: Parmênides moveu-se a passos firmes em direção à própria loucura metafísica. Mas é claro, pedirei para que venham sem se moverem, a não ser pelos caminhos metafísicos. Cuidado para não se cansar demais, aí, parado!
P. E você, cuidado para não errar o caminho e depois de se mover tanto, inutilmente, descobrir que chegou a uma cidade hostil aos gregos ou aos cabeças-duras.
Ambos, já muito distantes um do outro, não se ouvem mais. Mas dizem os ecos que eles ainda continuam debatendo como se se ouvissem.

Epílogo:
Reza a lenda que Heráclito, ao chegar à Eléia, foi chamado por todos de Parmênides. Sem ter êxito em conseguir desfazer energicamente o que considerava um terrível engano, foi levado à presença dos médicos da cidade. Após a administração dos medicamentos e um tanto de repouso, os médicos explicaram-no que ele, Parmênides, há muito havia desenvolvido um alter-ego o qual chamara Heráclito. Heráclito se movia enquanto Parmênides o guiava, e assim, ambos percorreram a pé boa parte do antigo vale dos ecos. Eram tão necessários um ao outro quanto gostavam de viver às turras. 
       

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