quinta-feira, 22 de novembro de 2012

PRÓLOGO NO HADES

- E aí, garoto, há quanto tempo.
- Quem é você?
- Não me reconhece?
- Não ouviu a minha pergunta?
- Ouvi.
- E me responde com outra?
- Não me reconhece mesmo? Sou o seu Medo, garoto, não se lembra?
- Já não adianta mais ter Medo.
- Do que você está falando?
- Já não é mais a minha estória.
- Não compreendo, Aquiles.
- Fui superado! É isso.
- Superado?
- Ulisses. Tornei-me um ATO de sua estória.
- É possível uma coisa dessas?
- Por que acha que estou aqui, nessa profunda e precoce escuridão?
- Você morreu e a estória continua?
- Exato. Não demora muito e Ulisses deve estar chegando.
- Morto?
- Não. Apenas de visita. Só agora compreendo: o PRIMEIRO ATO chegou ao fim e seu ápice foi a minha morte.
- Como sabe que ele virá?   
- Não sei como sei. Apenas sei.
- Se estiver errado?
- Estarei errado.
- Não se importa?
- Sinto que ele virá porque tenho algo para lhe dar.
- O quê?
- A máscara da consciência trágica. Talvez ela o ajude a conquistar algo que não tenha a morte como exigência.  

Ulisses se aproxima de Aquiles e Medo, sem ser visto por ambos:

- Divagando, Aquiles?
- Reconhecendo o seu valor, Ulisses.
- E quem é esse ao seu lado?
- Meu velho Medo.
- Medo?
- Sim, de falhar na conquista da glória eterna. E agora não consigo imaginar nada mais estúpido do que essa morte prematura.

Medo, constrangido, se afasta dos dois.

- Não seja tão duro consigo mesmo – diz Ulisses.
- Como eu poderia saber que haveria mais de um ATO?! Tudo poderia ter sido diferente. Sinto um gosto amargo.
- Não se torture. Ninguém poderia saber que haveria mais de um ATO, a não ser os deuses. É assim que vivem homens como nós.
- Vivem? Estou morto, Ulisses!
- Lamento por isso.
- Ok – diz Aquiles ao se acalmar. – Tenho algo para lhe dar.

Aquiles olha Ulisses nos olhos e, inesperadamente, o esbofeteia. Um estalo ecoa, seco. Ulisses se surpreende, espantado e cheio de ira:

- ENLOUQUECEU!? 

Ulisses revida o golpe tentando acertar Aquiles, mas sua mão atravessa o espectro imaterial do fantasma.

- Agora a outra face – diz Aquiles, calmamente, antes de esbofetear o outro lado do rosto de Ulisses, provocando mais um estalido.

Ulisses, com as duas faces vermelhas e inchadas, tenta em vão acertar Aquiles novamente. Chocado com a situação, grita:

- Maldito! Por que está me batendo?! Como consegue me acertar?!
- Acalme-se, Ulisses. Essa é a máscara da consciência trágica.
- Consciência trágica? Não preciso de nada que venha de você, garoto mimado! Tenho a deusa Atenas olhando por mim.
- A proteção dela não basta. Haverá outras bofetadas do destino contra as quais não terá a chance de revidar.  
- Revidarei sempre que for ultrajado!
- Mesmo que não tenha como acertar o alvo? Revidará contra si mesmo?

Ulisses, espantado com tudo aquilo, se cala sem resposta. Afasta-se de Aquiles e se senta sobre um pedregulho. Após alguns instantes de silêncio, se acalma. Aquiles se aproxima dele vagarosamente, coloca uma das mãos sobre seu ombro e diz:  

- Creio que esteja na hora de você partir. Para onde pretende ir agora?
- Estou tentando voltar para casa. Tenho sofrido muitas tribulações. Às vezes tenho a impressão de estar vivendo dentro de um pesadelo sem fim.
- Me parece que os deuses realmente nunca se cansam de brincar com nossos destinos.
- Por isso, antes de partir preciso encontrar Tirésias, o adivinho. Ele me dará instruções para que eu consiga voltar.
- Terá ele o poder de tornar mais fácil o seu retorno?
- Não. Apenas indicará o caminho. Tudo o mais depende da vontade dos deuses. Não vejo a hora de acordar deste pesadelo!
- Mas lembre-se, Ulisses, uma parte desse pesadelo é real: a tragédia é uma bofetada sem revide possível. Neste caso, acordar seria o mesmo que dormir para sempre. 

Ulisses fita Aquiles nos olhos e se cala. Após alguns instantes, diz: 

- Ouvirá minhas risadas quando eu pisar novamente os pés em Ítaca. Então, serão elas também suas. Serão nossas!
- Que assim seja! - diz Aquiles, com um sutil sorriso no canto da boca.
             

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