quarta-feira, 28 de novembro de 2012

O DEUS-FILÓSOFO

...toda nossa época, seja pela lógica ou pela epistemologia, seja por Marx ou por Nietzsche, procura escapar de Hegel: e o que procurei dizer a pouco a propósito do discurso é bem infiel ao logos hegeliano.

Mas escapar realmente de Hegel supõe apreciar exatamente o quanto custa separar-se dele; supõe saber até onde Hegel, insidiosamente, talvez, aproximou-se de nós; supõe saber, naquilo que permite pensar contra Hegel, o que ainda é hegeliano; e medir em que nosso recurso contra ele é ainda, talvez, um ardil que ele nos opõe, ao termo do qual nos espera, imóvel e em outro lugar.

...pode-se ainda filosofar lá onde Hegel não é mais possível? Pode ainda existir uma filosofia que não seja hegeliana? O que é não-hegeliano em nosso pensamento é necessariamente não-filosófico? E o que é anti-filosófico é, forçosamente, não-hegeliano? (...) Queria fazer da presença de Hegel um esquema de experiência da modernidade (é possível pensar à maneira hegeliana as ciências, a história, a política e o sofrimento de cada dia?), e queria, inversamente, fazer de nossa modernidade o teste do hegelianismo e, assim, da filosofia. Para Hyppolite, a referência era o lugar de uma experiência, de um enfrentamento em que não tinha nunca a certeza de que a filosofia sairia vitoriosa.

...a filosofia não [é] ulterior ao conceito; ela não precisa dar continuidade ao edifício da abstração, deve sempre manter-se retirada, romper com as generalidades adquiridas e recolocar-se em contato com a não-filosofia; deve aproximar-se, o mais possível, não daquilo que a encerra, mas daquilo que a precede, do que ainda não despertou para a sua inquietação; deve retomar para pensá-las, não para reduzi-las, a singularidade da história, as racionalidades regionais da ciência, a profundidade da memória na consciência; aparece, assim, o tema de uma filosofia presente, inquieta, móvel em toda sua linha de contato com a não-filosofia, não existindo senão por ela, contudo, e revelando o sentido que essa não-filosofia tem para nós.

(Michel Foucault, A ordem do discurso)
  

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

O AMOR ETHÔS-DAÍMON



A insensatez de um bom conselho

A insensatez que você fez
Coração mais sem cuidado
Fez chorar de dor o seu amor
Um amor tão delicado

Ah, por que você foi fraco assim
Assim tão desalmado
Ah, meu coração, quem nunca amou
Não merece ser amado

Vai, meu coração, ouve a razão
Usa só sinceridade
Quem semeia vento, diz a razão
Colhe sempre tempestade

Vai, meu coração, pede perdão
Perdão apaixonado
Vai, porque quem não pede perdão
Não é nunca perdoado

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Ouça um bom conselho
Eu lhe dou de graça
Inútil dormir que a dor não passa

Espere sentado
Ou você se cansa
Está provado, quem espera nunca alcança

Venha, meu amigo
Deixe esse regaço
Brinque com meu fogo
Venha se queimar

Faça como eu digo
Faça como eu faço
Aja duas vezes

antes de pensar

Corro atrás do tempo
Vim de não sei onde
Devagar é que não se vai longe

Eu semeio o vento
Na minha cidade
Vou pra rua e bebo a tempestade

 

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

PRÓLOGO NO HADES

- E aí, garoto, há quanto tempo.
- Quem é você?
- Não me reconhece?
- Não ouviu a minha pergunta?
- Ouvi.
- E me responde com outra?
- Não me reconhece mesmo? Sou o seu Medo, garoto, não se lembra?
- Já não adianta mais ter Medo.
- Do que você está falando?
- Já não é mais a minha estória.
- Não compreendo, Aquiles.
- Fui superado! É isso.
- Superado?
- Ulisses. Tornei-me um ATO de sua estória.
- É possível uma coisa dessas?
- Por que acha que estou aqui, nessa profunda e precoce escuridão?
- Você morreu e a estória continua?
- Exato. Não demora muito e Ulisses deve estar chegando.
- Morto?
- Não. Apenas de visita. Só agora compreendo: o PRIMEIRO ATO chegou ao fim e seu ápice foi a minha morte.
- Como sabe que ele virá?   
- Não sei como sei. Apenas sei.
- Se estiver errado?
- Estarei errado.
- Não se importa?
- Sinto que ele virá porque tenho algo para lhe dar.
- O quê?
- A máscara da consciência trágica. Talvez ela o ajude a conquistar algo que não tenha a morte como exigência.  

Ulisses se aproxima de Aquiles e Medo, sem ser visto por ambos:

- Divagando, Aquiles?
- Reconhecendo o seu valor, Ulisses.
- E quem é esse ao seu lado?
- Meu velho Medo.
- Medo?
- Sim, de falhar na conquista da glória eterna. E agora não consigo imaginar nada mais estúpido do que essa morte prematura.

Medo, constrangido, se afasta dos dois.

- Não seja tão duro consigo mesmo – diz Ulisses.
- Como eu poderia saber que haveria mais de um ATO?! Tudo poderia ter sido diferente. Sinto um gosto amargo.
- Não se torture. Ninguém poderia saber que haveria mais de um ATO, a não ser os deuses. É assim que vivem homens como nós.
- Vivem? Estou morto, Ulisses!
- Lamento por isso.
- Ok – diz Aquiles ao se acalmar. – Tenho algo para lhe dar.

Aquiles olha Ulisses nos olhos e, inesperadamente, o esbofeteia. Um estalo ecoa, seco. Ulisses se surpreende, espantado e cheio de ira:

- ENLOUQUECEU!? 

Ulisses revida o golpe tentando acertar Aquiles, mas sua mão atravessa o espectro imaterial do fantasma.

- Agora a outra face – diz Aquiles, calmamente, antes de esbofetear o outro lado do rosto de Ulisses, provocando mais um estalido.

Ulisses, com as duas faces vermelhas e inchadas, tenta em vão acertar Aquiles novamente. Chocado com a situação, grita:

- Maldito! Por que está me batendo?! Como consegue me acertar?!
- Acalme-se, Ulisses. Essa é a máscara da consciência trágica.
- Consciência trágica? Não preciso de nada que venha de você, garoto mimado! Tenho a deusa Atenas olhando por mim.
- A proteção dela não basta. Haverá outras bofetadas do destino contra as quais não terá a chance de revidar.  
- Revidarei sempre que for ultrajado!
- Mesmo que não tenha como acertar o alvo? Revidará contra si mesmo?

Ulisses, espantado com tudo aquilo, se cala sem resposta. Afasta-se de Aquiles e se senta sobre um pedregulho. Após alguns instantes de silêncio, se acalma. Aquiles se aproxima dele vagarosamente, coloca uma das mãos sobre seu ombro e diz:  

- Creio que esteja na hora de você partir. Para onde pretende ir agora?
- Estou tentando voltar para casa. Tenho sofrido muitas tribulações. Às vezes tenho a impressão de estar vivendo dentro de um pesadelo sem fim.
- Me parece que os deuses realmente nunca se cansam de brincar com nossos destinos.
- Por isso, antes de partir preciso encontrar Tirésias, o adivinho. Ele me dará instruções para que eu consiga voltar.
- Terá ele o poder de tornar mais fácil o seu retorno?
- Não. Apenas indicará o caminho. Tudo o mais depende da vontade dos deuses. Não vejo a hora de acordar deste pesadelo!
- Mas lembre-se, Ulisses, uma parte desse pesadelo é real: a tragédia é uma bofetada sem revide possível. Neste caso, acordar seria o mesmo que dormir para sempre. 

Ulisses fita Aquiles nos olhos e se cala. Após alguns instantes, diz: 

- Ouvirá minhas risadas quando eu pisar novamente os pés em Ítaca. Então, serão elas também suas. Serão nossas!
- Que assim seja! - diz Aquiles, com um sutil sorriso no canto da boca.
             

terça-feira, 6 de novembro de 2012

NOITE FRIA

- Escuta, Leslie, quero falar com você uns minutos.
- Tudo bem. Mas, merda, estou cansado. Passei o dia todo nas corridas.
- Mal, hum?
- Quando voltei ao estacionamento, depois que acabou, descobri que um filho da puta tinha arrancado meu para-choque ao sair. Isso é uma merda, você sabe.
- Como se saiu com os cavalinhos?
- Ganhei duzentos e oitenta dólares. Mas estou cansado.
- Tudo bem, não vou demorar muito.  
- Tudo bem. Que é que há? Sua velha? Por que não dá umas porradas pra valer em sua velha? Os dois vão se sentir melhor.
- Não, minha velha está bem. Só que... merda, eu não sei. Essas coisas, você sabe. Parece que não consigo entrar em nada. Parece que não me ligo. Tudo travado. Todas as cartas tomadas.
- Porra, isso é normal. A vida é um jogo unilateral. Mas você só tem vinte e sete anos, talvez dê sorte em alguma coisa, de algum modo.
- Que fazia você quando tinha minha idade?
- Estava pior que você. Ficava deitado no escuro à noite, bêbado, na rua, esperando que alguém me atropelasse. Não dei sorte.
- Não conseguia pensar em outra saída?
- Isso é uma das coisas mais difíceis, imaginar qual deve ser a primeira jogada da gente.
- É... tudo parece tão inútil.
- Nós matamos o filho de Deus. Acha que aquele sacana vai nos perdoar? Eu posso ser louco, mas sei que Ele não vai!
- Você só fica sentado aí, com seu roupão rasgado, e passa metade do tempo bêbado, mas eu sei que é mais são do que qualquer um que eu conheço.
- Opa, gosto disso. Você conhece muita gente?

Sonny apenas deu de ombros.

- O que eu preciso saber é se há uma saída. Há alguma espécie de saída?
- Garoto, não há saída. os analistas aconselham a gente a jogar xadrez ou colecionar selos ou jogar bilhar. Qualquer coisa menos pensar nos problemas maiores.
- Xadrez é um saco.
- Tudo é um saco! Não há como escapar. Sabe que alguns vagabundos de antigamente tatuavam no braço: "NASCIDO PARA MORRER". Por mais primitivo que pareça isso, é sabedoria fundamental.
- Que acha que os vagabundos tatuariam no braço hoje?
- Não sei. Na certa alguma coisa do tipo "JESUS BARBEIA*".
- Não podemos fugir de Deus, podemos?
- Talvez ele não possa fugir de nós.
- Bem, escuta, é sempre bom conversar com você. Sempre me sinto melhor depois de conversar com você.
- Quando quiser, garoto.

* "JESUS SHAVES" - trocadilho com saves: "Jesus Saves".

(Charles Bukowski, Numa Fria)