sábado, 27 de outubro de 2012

O ESPÍRITO LIVRE - 31

Nos anos da juventude, ainda veneramos a desprezamos sem a arte da nuance, que constitui nossa melhor aquisição na vida, e, como é justo, pagamos caro por atacar de tal modo com Sins e Nãos as pessoas e as coisas. Tudo se acha disposto para que o pior dos gostos, o gosto pelo incondicional, seja cruelmente logrado e abusado, até que o homem aprenda a pôr alguma arte nos sentimentos e, melhor ainda, a arriscar a tentativa do artificial: como fazem os veros artistas da vida. A ira e a reverência, que são próprias da juventude, parecem não descansar enquanto não tenham falseado as pessoas e coisas de maneira tal que possam nelas se desafogar: a juventude é, em si, algo que falseia e engana.

Mais tarde, quando a alma jovem, martirizada por puras desilusões, finalmente se volta desconfiada contra si mesma, ainda e sempre ardente e selvagem, inclusive na sua desconfiança e no seu remorso: como se enraivece então, como se dilacera impaciente, como se vinga por sua demorada auto-obcecação, como se ela tivesse sido uma cegueira voluntária! Nessa transição castigamos a nós mesmos, ao suspeitar do próprio sentimento; torturamos o entusiasmo com a dúvida, sim, sentimos até a boa consciência como um perigo, como que autodissimulação e fadiga da honestidade mais fina; e sobretudo tomamos partido, tomamos partido por princípio contra a "juventude". Um decênio depois; e compreendemos que tudo isso também era ainda juventude!

(Nietzsche, Além do bem e do mal)

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Durante a juventude, as mais áridas indiferenças, as mais cínicas grosserias, conseguimos encontrar-lhes desculpas de manias passionais e também sei lá de que sinais de inexperiente romantismo. Mais tarde, porém, quando a vida lhe mostrou muito bem tudo o que é capaz de exigir de cautela, de crueldade, de malícia para ser apenas, mal ou bem, mantida a trinta e sete graus, é que você percebe, você está pronto, bem colocado para compreender todas as porcarias que um passado contém. Basta, no final das contas, se contemplar escrupulosamente, a si mesmo, e aquilo que nos transformamos em matéria de imundice. Acaba-se o mistério, acaba-se a imbecilidade, toda a nossa poesia foi por nós devorada, já que vivemos até aquele momento. Neca de pitibiriba, a vida.


(Céline, Viagem ao fim da noite)
          

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